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Duas lí­nguas, muitas habilidades

Bruna Sensêve
postado em 10/09/2012 08:00
São duas palavras diferentes para descrever um mesmo objeto. Duas formas de perceber o mundo. As crianças criadas em um modelo bilingue aprendem desde cedo que, para se referir ao bicho de estimação, podem, por exemplo, falar "cachorro" ou "dog". Ou ainda que, entre os familiares, elas podem utilizar o idioma estrangeiro, mas, da porta de casa para fora, é preferível se comunicar com a língua falada no lugar onde moram. O que parece confuso para muitos adultos acaba se desenvolvendo de forma natural para esses pequenos. Agora, a ciência afirma que as vantagens desse modelo educacional vão além de uma possibilidade maior de comunicação ou da aquisição de uma habilidade que poderá fazer diferença mais tarde, no competitivo mercado de trabalho. Aprender mais de uma língua desde cedo, apontam pesquisas, favorece a formação de habilidades cognitivas como a resolução de problemas e o desenvolvimento do pensamento criativo.

A decisão de criar Lucca, 9 anos, nesse ambiente apareceu antes mesmo de o menino nascer. Marcelo e Ana Cláudia Conforto possuem casos na família de crianças educadas no bilinguismo e sempre acharam a proposta muito interessante. Por isso, o casal resolveu pesquisar se valeria a pena adotar a estratégia. "Percebemos que a criança bilíngue se comporta de maneira distinta das outras. Às vezes, até parece que o cérebro dela funciona de uma forma diferente", conta Ana Cláudia.

O depoimento não é mero exagero materno. Segundo Fraser Lauchlan, pesquisador da Escola de Ciências Psicológicas e Saúde da Universidade de Strathclyde, na Escócia, as crianças bilíngues atingem uma performance melhor em algumas atividades mentais do que aquelas que falam somente um idioma. Em um estudo conduzido por ele, foram avaliadas 121 crianças bilíngues e monolíngues entre 9 e 10 anos de duas escolas - uma na região da Sardenha, na Itália, e outra no país do cientista.

Foram aplicados quatro testes de capacidade cognitiva que buscavam medir a capacidade de aprendizado dos alunos. As principais diferenças encontradas estavam ligadas à agilidade mental necessária para alternar os idiomas, o que poderia ajudar no desenvolvimento de habilidades úteis em outros tipos de atividades mentais. "Nosso estudo descobriu que pode haver benefícios demonstráveis, não só na linguagem, mas na resolução de problemas de aritmética, permitindo às crianças pensar de forma criativa. Também avaliamos o vocabulário delas, não tanto pelo reconhecimento das palavras, mas pela compreensão. Houve uma diferença acentuada no nível de detalhes e riqueza na descrição feita pelos alunos bilíngues", detalha o pesquisador (leia entrevista ao lado).

Competências

As situações para o bilinguismo podem ser as mais diversas. Nicola Carechio, 16 anos, é brasileiro e filho do francês Walter Louis Jean Carechio, 50 anos. "Ele iniciou os estudos em uma escola de ensino normal e, na época da alfabetização, o transferimos para uma escola francesa, mas ele não se adaptou ao tipo de ensino", lembra Walter. Dessa forma, o aprendizado da língua francesa ficou reservado à relação de pai e filho.

Nicola, que planeja cursar o ensino médio na França, acredita que as principais vantagens do bilinguismo estão na possibilidades de viver sob culturas diferentes. "A primeira vez que fui à França ainda era pequeno. Fiquei na casa dos meus tios por uns dois meses e, como o ambiente era propício, foi muito mais fácil aprender a língua. Todo mundo conversava em francês. Meu pai falava comigo em português para explicar o que eu não entendia, mas no fim eu já estava falando normalmente", conta o jovem.

O professor Enrique Huelva, diretor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, explica que o aprendizado de duas línguas simultaneamente leva ao desenvolvimento das chamadas competências metalinguísticas. Isso quer dizer que o indivíduo consegue constatar que sua língua é apenas uma possibilidade entre várias outras e ter sensibilidade para a diferença, relativizando a língua e a cultura maternas. "No momento em que nós aprendemos duas línguas, desenvolvemos a capacidade da comparação. É poder olhar para um problema e ver não só uma possibilidade, mas várias", entende Huelva.

Nascido na Espanha, filho de um espanhol e de uma alemã, Huelva também foi educado dentro de uma diversidade linguística, que repete com seu filho brasileiro. Para ele, a forma de aquisição da segunda língua tem diferenças fundamentais básicas, como um limite etário para o domínio absoluto da pronúncia. "Depois de uma certa idade, essa possibilidade desaparece. No início da pré-adolescência, o desenvolvimento cognitivo, neurobiológico e até do aparelho fonador ainda é maleável. É possível se adaptar perfeitamente do ponto de vista fisiológico." Huelva exemplifica a questão com sua experiência em casa. O filho possui o aparelho fonador completamente adaptado para a língua portuguesa e espanhola. Já Huelva, bilíngue em espanhol e alemão, dificilmente conseguirá passar despercebido como um brasileiro nativo.

Memória

A servidora pública Luciana Sampaio Duarte, 41 anos, confirma dentro de casa o que diz o pesquisador em linguística. Suas filhas, Mariana e Carolina, 8 e 9 anos respectivamente, frequentam uma escola bilíngue e mostram uma desenvoltura notável no inglês. "Eu entendo que a criança nessa idade tem uma percepção mais aguda para diferenciação de sons. Nós não conseguimos fazer sons que elas fazem", analisa Luciana, formada em inglês.

Ela levou as filhas a uma escola bilíngue não devido às vantagens de aprendizado de duas línguas, mas ao tipo de educação oferecido. "Eu acho que a educação multicultural e a ideia de a criança estar inserida em uma aldeia global, em que todas as nações estão representadas, é o mais interessante", conclui Luciana. Para a coordenadora pedagógica da Escola das Nações, Ana Maria Mayr, é perceptível algumas frentes de desenvolvimento entre os alunos, como a memória, que se mostra mais aguçada.

"Questões de atenção, concentração e foco que a criança precisa ter são os fatores mais perceptíveis em sala de aula. Até pela própria idade e a exigência nessa faixa com relação a atenção e a concentração. É necessário um esforço da criança, mas também é um treinamento, e ela vai se moldando para esse tipo de situação", relata a pedagoga. A grande questão para o cientista Lauchlan, atualmente, é entender quando essas diferenças de percepção começam a surgir. Ele está próximo de finalizar um segundo estudo com crianças em idade pré-escolar em busca do momento em que a criança constrói essa diferenciação.

Três perguntas para

Quais as diferenças entre as crianças bilíngues e monolíngues sob o ponto de vista cognitivo?

É difícil responder a essa pergunta. É mais sobre a qualidade das diferenças, em vez da quantidade. Não é possível colocar um valor. As crianças bilíngues em nosso estudo demonstraram estatisticamente um desempenho significativamente melhor em dois dos testes: uma avaliação de habilidades para resolver problemas e outra de habilidades de vocabulário (em que fornecem definições para palavras). Alguns bilíngues também demonstraram um desempenho significativamente melhor em um teste de aritmética mental.

Há prejuízos que podem surgir devido a uma criação bilíngue?

Embora existam muitas vantagens em termos de desenvolvimento de crianças bilíngues, há ainda uma visão que sustenta que pode ocorrer um efeito prejudicial no vocabulário delas, ou seja, que ele pode não ser tão vasto quanto o de uma criança monolíngue. No entanto, a nossa pesquisa indica que, embora isso possa ser verdade nos primeiros anos, a maioria das crianças bilíngues alcança o mesmo patamar no momento em que estão com 7 ou 8 anos. Além disso, percebemos na pesquisa que as crianças bilíngues possuem um desempenho significativamente melhor do que as crianças monolíngues em um teste de definições de palavras: as definições das crianças bilíngues eram mais ricas em detalhes do que as das outras.

Que tipo de habilidade as crianças bilíngues desenvolvem?

Controle inibitório é uma importante habilidade cognitiva que essas crianças precisam desenvolver naturalmente por causa da necessidade de mudar de um idioma para outro rapidamente. Elas desenvolvem a capacidade de filtrar informações irrelevantes e focar na informação que é essencial para a tarefa que estão executando. Isso as ajuda em uma série de atividades e, provavelmente, explica por que elas se saíram melhor na resolução de problemas e testes aritméticos.

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