Munida apenas de linha e anzol, boa parte dos moradores do litoral cearense sustenta a família colhendo o que o mar lhe oferece. Como suporte, a maioria depende dos pequenos ;paquetes;, espécie de jangada em que não cabem mais de duas pessoas. O modelo mais popular da embarcação é feito de uma camada de isopor coberta por duas placas de madeira compensada, sobre as quais um fino mastro sustenta uma vela triangular. Na localidade de Barrinha de Baixo, no município de Acaraú, um design de aparência ainda mais rústica chama a atenção. É a última jangada do país construída a partir da raiz de timbaúba, um paquete em extinção que surpreende pela simplicidade, pela eficiência e por suas características sustentáveis.
A origem do projeto é desconhecida. Supõe-se que a embarcação seja fruto das jangadas construídas pelos índios naturais da região, complementada com uma vela latina, trazida pelos portugueses. Mas, se a criação da embarcação ainda é um mistério, seu fim parece bastante certo. Em todo o litoral do Ceará, só se tem notícia de uma pessoa capaz de construir o paquete secular: Edison Miguel da Silva, 61 anos, um pescador que acaba de se aposentar.
A história de seu Edison é contada no documentário A jangada de raiz, um dos 18 filmes concorrentes da Mostra Brasília do 45; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, encerrado nesta semana. Nos 25 minutos do vídeo, que recebeu o prêmio de melhor montagem da mostra, o cearense revela o hábito solitário que manteve durante toda a vida profissional de procurar, colher e transformar a raiz da timbaúba em sua ferramenta de trabalho. Ele aprendeu a técnica aos 14 anos, mas ainda não encontrou colegas a quem pudesse ensinar a atividade centenária. Atraídos por modelos de maior durabilidade, os outros pescadores e até mesmo seus filhos trocaram a madeira pelo isopor.
Seu Edison foi descoberto pela equipe do projeto Embarcações do Brasil, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que busca catalogar antigos modelos de barco usados no litoral do país. O pescador havia passado a vida construindo e usando seus paquetes artesanais, mas já estava se aposentando. A última jangada de raiz apodrecia no quintal do cearense. Foi necessário, então, convencer Edison a fabricar uma última embarcação. Teve início uma busca pela timbaúba, árvore cada vez mais rara na região. Embora sua madeira, leve e resistente, seja perfeita para a navegação, as raízes que crescem paralelas ao chão foram sendo retiradas para dar lugar a plantações.
Planta preservada
Pescadores como Edison, no entanto, não precisam matar a árvore para colher as raízes. Com a retirada somente das toras necessárias para a construção de uma jangada individual, a planta continua viva, e cresce novamente. ;Chegando em casa, descasco todas as raízes e coloco no sol, de pé, para enxugar. Quando ela está enxuta, isso leva uns dois meses, eu faço o paquete. Pego quatro pedaços de pau e começo a colocar de um lado e de outro de um pau de cajueiro bem lavado. Aí, começo a construir a jangadinha, toda torneada de torno de sabiá;, ensina o pescador.
Com a ajuda de uma corda de náilon, o conjunto é comprimido e preso por estoques talhados a partir da madeira de sabiá, mais dura que a timbaúba. Em toda a embarcação, não são usados mais do que oito pregos. Depois da secagem da madeira, seu Edison leva uma semana para completar a jangada, que cabe inteira numa carroça, usada para levá-la para a praia. O modelo é feito com base nas mãos e braços do pescador: tem 15 palmos de comprimento, e o mastro, duas braçadas e meia. Ele não usa ferramentas como trenas ou martelos ; os estoques são encaixados sob batidas do próprio machado usado na retirada da raiz.
Ao entrar no mar, a madeira seca absorve a água, inchando e fixando as peças no lugar. O sal marinho ainda ajuda a conservar a madeira, que chega a durar três anos. Quando o pescador navega de madrugada com o paquete tradicional, ele fica parcialmente submerso. Mas Edison garante que o modelo é seguro. ;Nos paquetinhos não tem perigo. Se ele chegar a naufragar, a gente passa por cima, desvira e bota o pano em cima de novo e vamos embora. Já aconteceu comigo na chegada, o mar me pegou com a bichinha, mas eu consegui subir de novo e ela me trouxe pro seco;, conta.
Elo perdido
Além do documentário, o trabalho de seu Edison também estará presente em um livro. Mesmo que o paquete de raiz não exista mais, Edson Fogaça, diretor do filme e coordenador do Embarcações do Brasil, acredita que muito possa ser aprendido com as técnicas usadas pelos pescadores de antigamente. ;Assim que não há mais necessidade econômica, a embarcação desaparece. Mas quem sabe os conhecimentos tradicionais possam ser aplicados em outros tipos de instrumentos;, explica o designer e arquiteto. ;A jangada de raiz é uma embarcação ecologicamente correta. Ele poderia dispensar o uso de qualquer tipo de elemento metálico. Esses conhecimentos precisam ser preservados.;
Parte dessa técnica será mantida viva no Centro Vocacional Tecnológico (CVT) Estaleiro-Escola, em São Luís. ;Nosso trabalho é no sentido de encontrar novas vocações para esses modelos. Cada um tem sua causa de extinção, mas aproveitamos o verdadeiro valor da técnica, que é a capacidade de resolver problemas com um mínimo de recurso;, resume Luiz Phelipe Andr;s, diretor do centro.
Mesmo com durabilidade menor, o paquete de raiz tem as vantagens de ser construído com uma matéria-prima renovável, sem a necessidade de qualquer ferramenta elétrica e com uma performance confiável. Quando sua vida útil termina, ela apodrece e volta à natureza, sem poluir o ambiente. ;É como se tivéssemos encontrado o elo perdido da invenção da jangada. Ela leva à raiz do conhecimento;, resume o engenheiro.
Assista
O filme A jangada de raiz será exibido hoje
e sábado, sempre às 19h, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), como parte da
programação da Mostra Brasília.
"Eu nasci para pescar"
PERSONAGEM DA NOTíCIA
Vindo de uma família de pescadores, Edison Miguel da Silva, 61 anos, deve à jangada de raiz de timbaúba o sustento que conseguiu prover à família. Todos os dias, por volta das 2h, ele saía de casa para pescar e só voltava quando o sol estava alto no céu. Da abiquara à guaiuba, qualquer peixe que mordesse a isca era bem-vindo no samurá, espécie de cesto que ele aprendeu a fazer com o pai. ;Eu nasci para pescar;, resume ele. Mas o trabalho foi solitário. A mulher, dona Maria, sempre teve medo do mar. Dos sete filhos, apenas dois se tornaram pescadores, e foram para o Maranhão ; e nenhum se interessou em aprender a arte da timbaúba. Com a chegada da idade e a independência da prole, Edison aposentou a jangada no ano passado.