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Água, uma commodity

Especialista norte-americano alerta, em artigo na revista Nature, para o risco de o recurso natural se tornar uma mercadoria negociada globalmente. Processo seria motivado pela escassez cada vez maior e poderia dificultar ainda mais o abastecimento de regiões pobres

postado em 26/10/2012 08:00

Plantação da Califórnia perdida devido à seca, em 2009: sem água, não há alimentosO termo inglês commodity é utilizado para designar uma série de produtos que, independentemente de onde e quando são produzidos, mantêm mais ou menos a mesma qualidade, e seu preço pode ser negociado em escala global. É o caso do petróleo, do ferro, da soja, do trigo e do café, entre outros, comprados e vendidos em bolsas de mercadorias e futuros. Em breve, essa lista deve ganhar um novo e importante item: a água. Pelo menos é o que prevê um artigo publicado na edição de hoje da revista científica Nature. Segundo o texto, o movimento seria reflexo da escassez cada vez maior do bem natural, e as consequências, desastrosas.

População compra água em Nairóbi: 1,4 bilhão de pessoas têm dificuldade de acesso ao líquido no mundoPara o autor, o pesquisador Frederick Kaufman, da City University of New York, nos Estados Unidos, a mercantilização pioraria ainda mais a falta do líquido em inúmeras regiões do globo. ;Seria um desastre para os mais pobres do mundo, que já sofrem sem poços, sem água encanada, sem sistemas modernos de irrigação;, afirma. ;A água financeirizada teria um efeito esmagador, tornando a pobreza cada vez mais difícil de eliminar e elevando o número total de miseráveis em todo o mundo;, completa.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente cerca de 1,4 bilhão de pessoas têm dificuldade de acesso à água potável, seja por inexistência de sistemas de encanamento, por problemas climáticos ou pela falta de tecnologia para extrair o recurso do solo. Além deles, pelo menos 2,3 bilhões de homens e mulheres não têm acesso a saneamento básico. Isso significa dizer que 3,7 bilhões de seres humanos, mais de metade da população mundial, enfrentam algum tipo de dificuldade severa em relação à água. E esses números não incluem, por exemplo, quem sofre com o racionamento, comuns em grande cidades do país nos períodos de estiagem.

Um exemplo do que pode acontecer caso haja o aprofundamento da mercantilização da água é dado pelo mercado de commodities alimentares como a soja, o milho e o trigo. Os preços desses produtos atingiram no último ano suas máximas históricas. ;Um sistema global de preços de alimentos beneficiou os agricultores. Já os padeiros e consumidores foram submetidos a derivativos financeiros criados por bancos de investimento;, aponta Kaufman. Ou seja, na matemática mercadológica, especuladores ganham e o consumidor final sai perdendo.

Uma das causas é a dificuldade dos governos em regulamentar este filão de mercado. Nos Estados Unidos, um pacote de medidas para evitar especulação com alimentos acabou na Justiça, onde está parado há anos, segundo o pesquisador, por pressão dos mercados que ganharam mais poder de manobra depois que a crise mundial minou empregos. ;É extremamente difícil regular o negócio de commodities globais, que movimenta US$ 648 trilhões em todo o mundo;, alerta o norte-americano.

Sem medida

A possibilidade de mudança do status da água de bem natural para produto negociado em bolsa é fruto, em grande parte, da exploração excessiva do bem, que vem se tornando tão escasso quanto ouro e petróleo. ;Os aquíferos, relativamente, são poucos e estão sendo explorados. Eles, infelizmente, são fundamentais para a agricultura em uma série de países;, explica Tom Gleeson, da Universidade de Montreal, no Canadá. ;Esses são recursos críticos que precisam de uma melhor gestão;, completa o especialista.
Ele lembra ainda que os efeitos da exploração excessiva da água, apesar de graves, são pouco mensuráveis pelos cientistas. ;O efeito para o abastecimento é imprevisível;, afirma. Gleeson, no entanto, diz não ser possível determinar exatamente quanto uma ação que dificulte o acesso à água seria catastrófica, tanto para o usuário doméstico quanto para a agricultura.

A primeira vez que o direito à exploração passou a ser negociada como um produto mercadológico foi em 1996, na região da Califórnia Ocidental, nos EUA. A região de 2 mil quilômetros quadrados movimenta mais de US$ 1 bilhão em alimentos por ano, sendo o principal distrito de agricultura irrigada dos país. Por lá, há 16 anos, foi introduzido um sistema de comércio eletrônico em que os agricultores locais podem negociar entre si o direito de uso da água subterrânea e de superfície, que, assim como no Brasil, é regulamentado ; e limitado ; por lei. De lá pra cá, a iniciativa cresceu. Apenas entre 2010 e 2011, o mercado de água cresceu 20%, atingindo em todo o mundo o valor de US$ 11,8 bilhões.

Apesar dos números vultosos, Frederick Kaufman ainda vê a possibilidade de evitar o problema. ;A transformação da água em uma commodity não é inevitável. Nós podemos pará-la antes que comece;, afirma. Ele defende uma regulamentação do setor, especialmente nas Américas e na Europa, onde o processo está mais acelerado. O recurso, defende, deve continuar sendo um bem universal. ;Há forças que empurram para a regulamentação, mas há forças opostas a favor dos negócios de derivados. Ainda não existem ;limites de posição; para os banqueiros quando se trata de comida (e água);, conclui.

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