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Flexibilidade: apaixonado por música, Ênio Chaves fez um curso de farmácia em busca de estabilidade financeira. Hoje, vive das duas atividades |
Para que serve a universidade? Para ensinar uma profissão? Garantir aprovação em um concurso público? Ou possibilitar o acesso ao mercado de trabalho? Ela até pode cumprir essas funções, mas, na opinião de especialistas, a função básica da academia está longe disso. Ajudar a desenvolver o pensamento crítico e promover o amadurecimento humano estão entre as funções primordiais do ensino superior, garantem. Embora esse papel venha perdendo espaço nos últimos anos, o ambiente acadêmico ainda mantém seu papel essencial na formação não de médicos, engenheiros ou professores, mas de seres humanos.
O mestrando em sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Edemilson Paraná, por exemplo, ressalta o aspecto libertador da educação. ;O principal papel da universidade é, ou pelo menos deveria ser, abrir a cabeça das pessoas para o mundo a sua volta;, afirma o jovem pesquisador. ;É para isso que serve primariamente o conhecimento: nos fazer pessoas melhores, capazes de, a partir do senso crítico, entender que todas as decisões que tomamos e as coisas que fazemos, profissionalmente ou não, têm implicações na vida de outras pessoas;, completa.
Nos anos de graduação e agora no mestrado, Paraná, como é chamado pelos amigos, buscou diversificar as experiências. ;Eu fiz muita coisa na universidade: estágio, pesquisa, movimento estudantil. Depois que me formei, sigo os estudos fazendo mestrado.; Numa vida acadêmica tão agitada, nem sempre as tradicionais aulas foram as que mais o influenciaram de maneira humana. ;Os debates nos corredores, as exposições, as festas, as movimentações políticas, tudo isso me permitiu viver esse ;universo; em intensidade, colocando em xeque, de modo crítico e criativo, os ensinamentos que obtive nos livros e na sala de aula;, conta.
Embora o momento do vestibular seja carregado de expectativas entre os jovens, para muitos que vivem a formação superior ou saíram há pouco tempo dela, independentemente do curso, as escolhas vão revelando um lado mais relativo. Assim como os gostos mudam, o amadurecimento adquirido durante a formação superior, que marca a passagem da adolescência para a vida madura, pode abrir muitas outras possibilidades que a visão juvenil frequentemente não percebe. Mesmo sendo alardeada como tal, a escolha do curso superior não é um contrato com o destino que seguirá a vida acadêmica e determinará os rumos da idade adulta.
Nascido em Santa Maria da Vitória, cidade no interior da Bahia, Ênio Chaves sempre teve o sonho de se embrenhar pelo mundo da música. Desde criança fez aulas com artistas autodidatas de sua cidade e, na medida do possível, desenvolveu seu talento para o canto e os instrumentos. Quando chegaram o fim do ensino médio e a hora de escolher o curso para o qual prestaria vestibular, contudo, não foi a música a opção marcada. ;Escolhi farmácia porque é uma área de que eu gosto e que me ajudaria a me manter. No futuro, poderia continuar meu sonho;, conta. Na UnB, encontrou um ambiente que o ensinou mais do que mecanismos bioquímicos e tecnologias de produção de remédios. ;A universidade é um lugar que te faz amadurecer, se abrir para o mundo;, conta, agora, depois de formado.
Ênio seria um cantor que virou farmacêutico ou um farmacêutico que ataca de músico? Isso nem ele mesmo sabe dizer. O fato é que a experiência no mundo dos medicamentos, dos laboratórios e dos pacientes lhe ajuda a hoje ser um artista mais completo. ;Para começar, tem a questão financeira. Não sei se teria condições de investir no meus sonho se tivesse seguido na universidade um curso de música. Hoje, minha formação é algo que me ajuda a pagar as minhas contas;, conta o cantor, recentemente aprovado no concurso da Secretaria de Saúde do DF. ;Por outro lado, tem a questão humana. Você cresce e amadurece muito na academia, se desenvolve, cria responsabilidade, organização;, conta.
Além dos fatores ligados ao amadurecimento pessoal, o conhecimento adquirido nos bancos da universidade ajuda o farmacêutico a ver a música de uma forma diferente. ;Quando estudo técnica vocal, por exemplo, consigo compreender melhor do que outros alunos como funciona a minha voz e o aparelho vocal graças a conhecimentos de anatomia e fisiologia que aprendi na faculdade;, exemplifica Ênio. ;Apesar de meu curso não ser o que eu pretendo seguir para a vida, com certeza, foi válido. Se fosse hoje, faria novamente;, completa o artista/farmacêutico, que agora sonha em cantar ao lado de uma grande estrela da música. Ênio é um dos 30 finalistas do concurso que escolherá os backing vocals da cantora Beyoncé em sua turnê brasileira do ano que vem.
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"Os debates nos corredores, as exposições, as festas, as movimentações políticas, tudo isso me permitiu viver esse "universo" em intensidade, colocando em xeque, de modo crítico e criativo, os ensinamentos que obtive nos livros e na sala de aula" Edemilson Paraná, mestrando em sociologia |
Crise existencial
Apesar do papel importante no amadurecimento, a universidade enfrenta uma crise existencial, opina a psicóloga e doutoranda em educação da Universidade de Brasília (UnB) Maria Emília Bottini. ;Ela ainda tem um papel fundamental na formação dos seres humanos, mas esse papel não está sendo cumprido como deveria;, opina. Para ela, a moderna universidade brasileira tem, aos poucos, se distanciado do modelo que privilegia o amadurecimento profissional e se aproximado de uma formação mais tecnicista. ;Vale uma reflexão: que universidade nós queremos? Aos poucos, as instituições viraram as costas para o social. Não conseguem incitar a reflexão, o debate. Uma recente pesquisa mostrou que 36% dos estudantes de uma determinada instituição se formavam pensando exclusivamente em prestar concurso público. Onde fica o papel de transformação social do conhecimento adquirido ali?;, lamenta.
Segundo Bottini, o processo é fruto de uma degradação das condições de permanência dos estudantes nas instituições. ;Uma recente pesquisa mostrou que 25% dos alunos não conseguem se formar. Quer dizer, não estamos conseguindo sequer manter os alunos na faculdade quanto mais ajudá-los a ampliar a visão de mundo, desenvolver o espírito questionador;, conta a psicóloga e acadêmica. ;A universidade ainda mantém o seu papel como principal espaço de reflexão, mas está em crise, ela precisa pensar, em um sentido universal, sobre qual o seu papel;, completa.
Na opinião do mestrando em sociologia Edemilson Paraná, é preciso que as instituições superiores encontrem o seu caminho em meio a um mundo que demanda cada vez mais delas. ;Acho que a palavra de ordem é equilíbrio. É evidente que entramos na universidade em busca de uma profissão, mas esse fato não pode tirar de vista a importância de uma formação humanística e cidadã que nos permita exercitar o senso crítico. Antes de sermos profissionais, somos pessoas, somos sociedade, e tudo o que faremos profissionalmente, nossas escolhas e o modo de realizar essa profissão, impactará em nossa vida e na vida dos outros;, afirma o também funcionário do Conselho Nacional do Ministério Público. ;Um profissional mais consciente, mais crítico e mais um humano é, sem dúvida, um profissional melhor. Os conhecimentos obtidos na universidade devem ser utilizados, profissionalmente ou não, em prol das pessoas para promover mudanças sociais. E é assim que acho que a universidade deve ser: um equilíbrio entre formação técnica ; do fazer profissional ; e da formação humanística e cidadã.;
Evasão preocupante
Um levantamento feito pelo Decanato de Ensino de Graduação da Universidade de Brasília (UnB) mostra que, embora tenha caído consideravelmente, ainda é alto o índice de evasão de alunos. A taxa, que já atingiu 42% há oito anos, bateu 11% em 2011. A média no período ficou em 25%. As maiores vilãs para que os jovens abandonem a formação superior são a demora para concluir a graduação, a mudança de curso, a falta de condições financeiras para se manter na universidade e a reprovação.