Cambojanos apresentam dança típica do país: relação íntima da música com o movimento está presente em todas as culturas |
A música, literalmente, move as pessoas. Em todas as culturas, os primeiros acordes e batuques são suficientes para que as pessoas comecem a mexer o corpo, mesmo que discretamente. A relação entre som e movimento é tão forte que, em várias línguas do mundo, as palavras música e dança são intercambiáveis, e há casos em que são um mesmo vocábulo. Mas o que está por trás dessa ligação tão forte? Para determinar em que medida as duas expressões se comunicam, pesquisadores norte-americanos do Dartmouth College desenvolveram experimentos pelos quais puderam demonstrar que o ser humano utiliza a mesma estrutura de pensamento quando se expressa por meio de sons ou gestos.
Os testes foram aplicados tanto em moradores dos Estados Unidos como nos de uma vila isolada no Camboja. Utilizando um programa de computador, os participantes tinham de expressar, por meio de sons ou de movimentos, as emoções raiva, felicidade, tranquilidade, tristeza e susto. Além de concluir que as duas formas de expressão seguiam o mesmo padrão, os pesquisadores notaram que não havia diferenças significativas entre as duas culturas, indicando uma universalidade dos resultados, apresentados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas).
Segundo Thalia Wheatley, uma das autoras do estudo, a equipe de cientistas criou um programa capaz de gerar música por meio de melodias de piano e movimento a partir da animação de uma bola quicando. Na primeira etapa do estudo, nos Estados Unidos, 50 estudantes foram divididos em dois grupos: um manipulou as funções musicais do software, e o outro, as funções de movimento. Cada participante completou o experimento individualmente, sem tomar conhecimento do outro grupo.
Os estudantes eram instruídos a utilizar o tempo que fosse necessário para expressar as cinco emoções por meio do programa. Entre os parâmetros que podiam controlar, estavam a quantidade de saltos da bola ou de notas musicais por minuto, o intervalo entre eles, a direção e a amplitude do movimento, entre outros. Cada escolha imprimia uma posição na linha de leitura tanto dos estímulos musicais como nos de movimento ; algo como uma partitura ou o desenho da trajetória da bola.
Ao tentar expressar raiva, por exemplo, os participantes que trabalhavam com os sons usavam mais notas por minuto e em intervalos menos lineares, por exemplo. Da mesma forma, aqueles que manipulavam a bola virtual também optavam por mais quiques por minuto. Por outro lado, ao manifestar tranquilidade por meio do programa, os participantes geravam notas e quiques de bola mais ritmados e espaçados. A comparação dos gráficos gerados pelo programa de computador mostrou aos especialistas que o padrão de quiques e melodias era muito semelhante para cada emoção.
Isolados
Depois da etapa norte-americana, os pesquisadores se dirigiram a L;ak, uma vila rural em Ratanakiri, província pouco povoada no nordeste do Camboja. L;ak é uma aldeia de minoria étnica que mantém ainda hoje um elevado grau de isolamento cultural. Entre eles, a música e a dança são parte primordial de rituais como casamentos, funerais e sacrifício de animais. Sua música, entretanto, é bem diferente da ocidental: não apresenta nenhum sistema equivalente à harmonia tonal do Ocidente, sendo construída com diferentes escalas e afinações.
Com exceção de pequenas modificações, o experimento em L;ak foi conduzido da mesma forma que nos Estados Unidos. ;Porque a maioria dos participantes era analfabeta, nós simplesmente removemos os textos das telas de controle. Como nós observamos também que os voluntários tinham dificuldade de lembrar a função de cada parâmetro, nós transmitimos as instruções verbalmente, com a ajuda de um tradutor;, detalha Wheatley. Apesar das pequenas diferenças metodológicas, e para além das diferenças culturais, os pesquisadores constataram que eram iguais as formas de expressão dos sentimentos entre cambojanos e norte-americanos. Além disso, a estrutura de pensamento era a mesma para as expressões musicais e de movimento.
;Esses experimentos revelaram três coisas;, escreveram os autores no artigo publicado na Pnas. ;Cada emoção foi representada por uma combinação de características próprias; cada combinação expressou a mesma emoção, tanto pela música como pelo movimento; e essa estrutura igual entre música e movimento foi evidente entre as culturas;, completaram.
Para o professor do Departamento de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) Carlos Nogueira Aucélio, a semelhança acontece porque as diferentes regiões do cérebro ativadas para o estímulo motor e sonoro são interconectadas. ;Ao atingir uma, você provoca o efeito em outra. Na medicina, nós temos aplicado os estímulos musicais para ativar áreas do cérebro com deficiência. Isso auxilia, por exemplo, crianças com atraso motor, pois a música pode ativar essas áreas com problemas;, explica. De acordo com Aucélio, esses estímulos sensoriais e musicais são mais biológicos do que culturais, e é por isso que as respostas não diferem muito de país para país. ;Essa hipótese não é nova, já é algo conhecido, mas somente hoje estamos conseguindo definir melhor as regiões do cérebro ativadas nessas circunstâncias e suas respectivas funções;, defende.
; Palavra de especialista
Ritmo e espaço
;Não existe música sem ritmo, por mais caótico que este possa parecer. Ou seja, qualquer sequência de sons está distribuída no tempo, formando um ritmo. A mesma relação se estabelece com a dança (ou o movimento) e o espaço. Ambas são formas de interação entre os seres humanos, expressas no meio físico em que estamos. O artigo tenta demonstrar que as formas que escolhemos para expressar e compreender essas interações são universais, possuem uma estrutura comum no pensamento dos seres humanos e que se assemelha quando tentamos compartilhá-las. Esse estudo é mais um passo da ciência tentando compreender aspectos da natureza humana que são acessíveis por meio da sensibilidade. Sua metodologia é baseada em estudos behavioristas e inspirada em concepções etnográficas, tentando realizar um modelo matemático de explicação e pelo uso de tecnologia interativa e de fácil manipulação. Nesse contexto, a concepção do estudo não é inovadora e reafirma a percepção de artistas e pensadores dos últimos dois séculos acerca da expressão musical. Contudo, não deixa de ser interessante e pode abrir novos caminhos para pesquisas relacionadas ao funcionamento do cérebro humano.;
Eduardo Kolodoy, produtor musical e pesquisador do Departamento de Música da UnB