Ivan Iunes
postado em 13/05/2013 11:18
Há exatos 125 anos, o Brasil Império, sob o comando de uma princesa interina, passava por uma ebulição social nunca vista nos mais de três séculos de história documentada desde o descobrimento, em1500. No início do ano de 1888, começavam a se desenhar os acontecimentos que culminariam em um dos mais importantes marcos legais do país: a Lei Áurea. Para recontar esse momento emblemático, o Correio convida você, caro leitor, a uma viagem no tempo. Até terça-feira, a série de reportagens Abolição, 125 anos volta ao Rio de Janeiro da segunda metade do século 19, província que abrigava o jogo político da época, para contar como se deu a extinção da escravidão no Brasil em seus quatro dias decisivos. As reportagens mostrarão os embates entre deputados e senadores, a pressão do governo imperial e o quanto as relações de poder no fim do século retrasado guardam semelhanças com os tempos atuais. Para isso, a cada dia, questões contemporâneas relacionadas à desigualdade racial brasileira serão trazidas à tona.Uma boa viagem!Milhares de lírios e rosas cobriram ontem a Rua Primeiro de Março. Nas imediações da Câmara dos Deputados, no centro do Rio de Janeiro, o clima de comoção tomou conta dos cerca de 5 mil manifestantes que acompanharam a votação do projeto de lei que extingue a escravidão no país. Depois de três dias de discursos ácidos e de provocações mútuas dos parlamentares, a proposta, enviada ao Congresso Nacional pela princesa imperial regente, Isabel, foi aprovada por 83 votos a favor e nove contra. Única nação domundo ocidental que ainda mantém o regime de servidão, o Brasil nunca esteve tão próximo de extirpar o que vem sendo chamado de ;cancro social; pelas campanhas emancipadoras. Para o rompimento total dos grilhões, contudo, é necessária ainda a chancela do Senado, que começará a examinar o texto hoje mesmo.
Apesar do temor em torno de um retrocesso no Senado, conhecido pelo conservadorismo em suas posições, a festa nas ruas se estendeu por horas. Com flores e aplausos, homens e mulheres descalços, evidenciando a condição de criados, já que o uso de sapatos é permitido apenas às pessoas livres nos dias atuais, festejaram ao lado dos milhares de brancos que apoiam a abolição. Antes mesmo de o resultado da votação ser anunciado, era grande o frisson no plenário da Câmara, cujas galerias ficaram lotadas de gente atenta aos movimentos dos parlamentares. Palmas e gritos de ;Apoiado!” chegaram a irritar o deputado Andrade Figueira, do Partido Conservador, ferrenho defensor da manutenção da escravidão. ;A invasão de pessoas estranhas converte a augusta majestade do recinto em circo de cavalinhos;, reclamou.
Dono de uma postura radical, Figueira protagonizou, na sessão de terça-feira;quando o projeto começou a ser analisado ;, um dos embates mais tensos dos últimos dias, ao discutir com o deputado Joaquim Nabuco, do Partido Liberal em Pernambuco, sobre o cumprimento do Regimento Interno da Casa. Ao questionar a celeridade, medida em minutos, com que a comissão especial criada para analisar o projeto apresentou o parecer, Figueira disparou: ;Quaisquer que sejam as impaciências para converter em lei a proposta do governoé preciso colocar, acima de tudo, a legalidade dos atos do parlamento;, disse o deputado do Rio de Janeiro. A queixa foi em vão. Por maioria, a Câmara entendeu que o prazo de 24 horas é necessário apenas para os colegiados ordinários, e não para uma comissão especial, caso em questão.O primeiro dia de debates terminou, entretanto, sem definição clara do resultado final.
Anteontem, os deputados retomaram as discussões. O ministro da Agricultura, Rodrigo Silva, emissor formal da proposta que a Coroa enviou ao parlamento, abriu os trabalhos da Câmara com um discurso contundente em defesa do projeto. Ele citou a Lei dos Sexagenários, em vigor há menos de três anos, que concede liberdade a escravos idosos, como um prelúdio da libertação total. Diante das sugestões, por vezes discretas, de modificação do texto para postergar por alguns anos a abolição, o deputado Araújo Góes se apressou em apresentar uma emenda à redação do projeto deixando claro que a lei vigoraria desde a data da sanção da princesa regente.
Nesse momento, o deputado Spinola Zama, da Bahia, e defensor da abolição, requereu votação nominal da proposta, para que os nomes ficassem gravados nos anais da Casa.Odia terminou com o placar de 83 votos favoráveis e nove contrários, selando a aprovação do projeto em segundo turno.Aterceira e última discussão, travada ontem, foi marcada por pronunciamentos conformistas, por parte dos que já se viam derrotados no debate. Por entendimento do plenário, a proposta entrou na fase derradeira de apreciação sem que fosse necessário aguardar a impressão do projeto, que tem apenas dois artigos. Sem debate, foi aprovado e remetido ao Senado.
Visivelmente emocionado, Nabuco pediu a palavra para mandar um recado aos colegas de parlamento. ;Vamos esperar da sabedoria, da generosidade, do patriotismo do Senado que ele, onde infelizmente não existe o encerramento das discussões, não impeça a passagem de uma lei como esta.; O deputado, que se tornou uma das vozes mais eloquentes em favor da abolição neste século, arrematou o discurso, sob gritos de ;Apoiado!”, festejando a quase unanimidade na aprovação do projeto. ;Não há vencidos nem vencedores nesta questão, são ambos os partidos políticos unidos que se abraçam neste momento solene de reconstituição nacional;, disse Nabuco.
;ANÁLISEDANOTÍCIA;
A votação em apenas três dias na Câmara dos Deputados do projeto de lei que liberta os escravos mostra que a proposta, pela primeira vez, terá chance de sair do Congresso Nacional chancelada pelas duas Casas. Mesmo o Senado parece não ter fôlego para prolongar o regime. Resta aos escravocratas apostar as cartas no lobby comandado por um senador do Império, o conservador Barão de Cotegipe. As articulações esbarram, no entanto, no ímpeto dos próprios colegas de partido.
Parte deles avalia ser melhor iniciar uma debandada abolicionista e dividir o bônus pela aprovação da lei a deixar os liberais sozinhos no palanque. Caso demore outro par de anos, a alforria chegará quando, simplesmente, não mais haverá a quem libertar. (II)
;EMBATE;
;Esta lei, senhor presidente, não pode ser votada hoje, mas, por uma interpretação razoável do nosso regimento, à qual, estou certo, não poderia opor-se o coração de bronze do nobre deputado pelo 11; distrito do Rio de Janeiro; (palmas e aplausos das galerias); Deputado JoaquimNabuco, do Partido Liberal
;Aproveitando da palavra, direi ao nobre deputado pelo 1; distrito da província de Pernambuco, que se julgou apto para conhecer de que matéria era formado meu coração, que não sei se ele é de bronze; mas, se o é, prefiro seja de bronze a que seja de lama; Deputado Andrade Figueira, do Partido Conservador