Olhar a primeira vez para os blocos residenciais das asas de Brasília causa, ao mesmo tempo, estranheza e devoção. A aparente inocuidade arquitetônica, quase repetitiva, esconde vidas pulsantes. E, diante da quantidade de pessoas que escolhem a cidade como lar ; seja pela qualidade do ensino superior, seja pelo emprego público alcançado por concurso ;, muitos desses apartamentos se tornam um ambiente de configuração familiar diferente.
Nas repúblicas da capital, não há apenas estudantes. Mesmo que esses sejam maioria, o medo da solidão une pessoas de idades e trajetórias diferentes em ambientes com regras de convivência. Os quartos se tornam minilares, com personalidade e estilo únicos. Uma configuração tão atraente que muitos se tornam independentes, mas não têm como meta morar sozinhos. Preferem continuar dividindo a vida com amigos, na criação de um lar que, mesmo temporário, não deixa de ser familiar.
;A gente se vê totalmente como uma família. Tanto que o meu namorado mora, praticamente, aqui. A Kantuta está sempre aberta e, se há alguém de fora que precisa de um lugar para ficar, será conosco. A gente fica muito grato em hospedá-lo. Aqui, passa muita gente porque mora muita gente;, explica a engenheira florestal Simone Mazer, 26 anos, a filosofia de uma das repúblicas.
Da convivência do lar de nascimento à escolha de criar o seu, junto de amigos ou conhecidos, há um passo longo e que envolve muito autoconhecimento. ;Antes de você passar um tempo morando junto, não adianta querer criar planejamento e organização: a lógica é do cotidiano, que é dinâmico e diferente todos os dias. Aqui, temos três que trabalham fora, duas que ficam mais em casa. É preciso saber a relação de cada um dentro de casa;, garante a comunicóloga Maria Vitória Canesin, 26 anos.
A Revista conheceu cinco repúblicas de diferentes formatos para entender o que elas têm de especial em Brasília. Nas formas como cada uma delas se resolvem, um pouco do que é viver em conjunto. E, mais ainda, em família.
Conforto e vista pro lago
Elton John dá as boas-vindas a quem chega à Kantuta. Aliás, música é um dos principais itens da receita que faz do casarão em que vivem oito pessoas um ambiente no qual todo visitante sente desejo de voltar. Os sons, inclusive, não se limitam aos vinis que decoram a sala. Por viverem à beira do lago, tendo à disposição um grande quintal que finda no Paranoá, há o barulho dos pássaros, o roncar dos motores das lanchas, as risadas do domingo cheio de histórias e o entra e sai da cozinha.
A Kantuta é um exemplo do modo como as repúblicas se configuram de forma diferente em Brasília. Todos os moradores já saíram da faculdade e o fator financeiro não foi preponderante na escolha. ;Claro que sei que jamais poderia bancar uma casa tão grande. Mas, aqui, vivemos juntos mais pela busca de ter uma experiência com pessoas das quais gostamos. Todos já trabalham, têm suas responsabilidades, já saíram da casa dos pais há um tempo. Lidamos de maneira diferente com a vida;, explica a engenheira florestal Simone Mazer, 26 anos.
Foi ela, com o gestor ambiental Ricardo Rettmann, 28 anos, quem descobriu a casa de oito suítes, que servia como um asilo. ;A pegada é bem essa: repúblicas em Brasília não são apenas de estudantes. Nós trabalhávamos juntos e resolvemos que seria uma boa ideia morar com mais gente, dividindo as contas e as histórias;, explica ele. Ao entrar na casa, Simone lembra que chegou a tremer de excitação. As vantagens eram muitas: além de todos os quartos terem banheiro, o espaço era grande o suficiente para que todos pudessem ter um local confortável e, ao mesmo tempo, a chance de compartilhar a vida com gente escolhida pela afinidade.
;Já tínhamos um diálogo com outros de querer morar em uma casa com quintal e, quando achamos esta aqui, vimos que era a hora de conversar e saber se poderíamos viver todos juntos. Isso foi em outubro de 2011;, conta Simone. No primeiro momento, apenas seis conviviam. Ao perceberem que a área permitia mais convites, decidiram chamar outros amigos. Hoje, além dos oito moradores fixos, há duas moças que se hospedam regularmente nas temporadas que passam no Brasil ; são da Alemanha e da Espanha ; e um sem-número de amigos e agregados.
;Rola um sentimento de orgulho e prazer de morar aqui. Tanto que queremos compartilhar com o máximo de pessoas. Acho até que seria um pouco de egoísmo da nossa parte não deixar essa porta aberta;, garante o realizador audiovisual Alan Schvarsberg, 28 anos. Viver com pessoas escolhidas pela amizade é uma experiência transformadora, dizem. Quem já havia morado sozinho, caso do jornalista Pedro Rafael Pereira, 26 anos, reviu conceitos. ;Foi surpreendente, de forma positiva, morar com um grupo de amigos. Depois de um certo tempo morando só, você acha difícil dividir com outras pessoas os seus hábitos e manias. Mas, quando cheguei aqui, vi que não precisaria me adaptar a nada.;
Como em todo ambiente coletivo, a Kantuta tem regras. Todos fazem questão de reforçar que elas existem também para serem discutidas, e que o diálogo é a forma mais usada para resolver as demandas que surgem. ;Elas existem, mas tudo é sempre muito conversado. Há uma mais rígida: qualquer evento na casa deve ser discutido antes para garantir a tranquilidade. Eu e todos aqui gostamos dessa coisa de chegar e ter gente em casa, poder ficar na sala dando risadas, conversar sobre a vida juntos;, diz Simone.
Duplas se revezam semanalmente para fazer o supermercado. Além dos muitos itens de limpeza, há sempre quilos de queijo e presunto, dezenas de pães, caixas e caixas de leite e um sem-número de outras mercadorias que são compradas quase no atacado. ;Nós fazemos questão ; e isso é uma forma de melhorar o convívio ; que tudo comprado na casa seja coletivo. Isso evita um monte de conflitos de quem comprou o que, quem pegou o que é meu, etc. Tudo é de todos;, garante Ricardo. A possibilidade de escolher quem vai morar na casa também ajuda a construir uma intimidade mais pacífica. Alan e o sociólogo Marcos Arcuri, 28 anos, são membros de uma mesma banda e conheceram a Kantuta durante um show que fizeram lá.
;Tive um encantamento imediato pela casa e pela harmonia existente nela. A galera me recebeu, sugeriu que eu ficasse uma semana para sentir o clima;, lembra Alan. Marcos demorou mais na decisão, mas não se arrepende. Garante que, para ele, o aspecto definidor da boa experiência na Kantuta é justamente as pessoas que moram lá. ;Dividir uma casa depende muito das pessoas com quem você vai morar;, resume.
Eles acreditam, inclusive, que a busca por essa coletividade é um reflexo do cotidiano brasiliense. A configuração arquitetônica, moldada em apartamentos que dificultam a sensação de vizinhança, bem como a priorização das vias para os automóveis, causa, em muitos, um sentimento de solidão. ;A busca por moradia coletiva é sinal de um incômodo quando você percebe que Brasília tem um modelo arquitetônico muito cartesiano. Coletivar as relações ocorre por esse incômodo trazido pela falta de contato imposta pela arquitetura;, acredita Alan.
;Brasília é uma cidade bem especial para quem chega de fora, por conta de conhecer menos gente, pelos custos altos de se viver aqui. Isso cria uma ideia de repúblicas mais maduras, de pessoas que trabalham, mas querem viver juntas. E é visível como elas são diferentes das que existem em outros lugares;, avalia o pesquisador e desenvolvedor em tecnologia Facundo Larrosa, 33 anos. Natural de Buenos Aires, ele já está em sua terceira república aqui.
Entre um papo e outro, café da manhã no quintal, banho de lago, carinho nas cachorras Lola e Pagu e uma lasanha ;comunitária;, a Kantuta segue. Seja morador, seja agregado, ela os recebe e mostra que conviver é bem mais simples do que parece.
Kantuta
Moradores: oito pessoas
Regra maior: não fazer festas sem antes avisar a todos os moradores
Tempo de existência: desde 2011