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Vidas transformadas

A vida é mais complicada para quem troca de sexo. Mesmo assim, os transexuais seguem em frente e, aos poucos, começam a conquistar espaço na sociedade

postado em 15/07/2013 18:00

Estudante da UnB, Marcelo sempre driblou as dificuldades para evitar constrangimento. Agora, exige respeito

Durante alguns anos, quando o estudante Marcelo Caetano, 23 anos, estava na faculdade ou passeando no shopping, preferia se segurar para ir ao banheiro em casa. Quando precisava de uma roupa nova, ia até a loja e adquiria o produto sem experimentar. Preferia fazer o teste em casa a usar os trocadores nos estabelecimentos comerciais. Se a nova compra não caísse bem, voltava à loja e trocava. Atualmente, está tendo dificuldades em assinar um contrato de estágio: como atuará em dois órgãos do governo, vai precisar de dois crachás com o nome, direito que talvez não seja garantido porque Marcelo, como exige ser chamado, não é o nome que consta no registro de nascimento. ;Se eu não conseguir esse crachá, não vou assinar;, afirma.

Problemas com esses hábitos simples fazem parte da rotina dos transexuais, especialmente quem ainda não concluiu a chamada ;passagem;, que é quando o tratamento hormonal está começando e a aparência deixa dúvidas sobre o gênero da pessoa. É comum evitar banheiros públicos, por medo de comportamentos hostis de ambos os sexos. Quem ainda não conseguiu mudar o nome de registro para o social sofre diariamente em bancos, cartórios, entrevistas de emprego e até no trabalho.

O principal problema enfrentado é na hora de formalizar o registro da carteira de trabalho: muitos empregadores, ao perceberem que estão conversando com alguém que mudou de sexo, não cogitam a contratação. Muita gente acaba nas ruas. ;As pessoas não querem recrutar a gente, somos marginalizadas;, descreve Letícia Pires, 42. Ela trabalha como cabeleireira e maquiadora, e tem planos de abrir o próprio salão, para tirar outras mulheres trans de situações degradantes.

Letícia sonha em abrir um salão e resgatar aqueles que foram para as ruas

A servidora comissionada Vitória Régia, 29, passou por duas experiências malsucedidas para encontrar trabalho. Ela ainda não conseguiu mudar os documentos para o nome que escolheu, mas não tem problemas em esclarecer que aquele registro masculino é dela. Nas duas entrevistas em que foi rejeitada, os selecionadores mal falaram com ela e informaram que telefonariam avisando do resultado. Vitória ficou sem resposta. ;Fiquei chateada, porque eu sabia que era por causa da minha aparência. É bom ser mulher, mas emprego é muito importante. Eu estudei para quê?;.

Trâmite
O nome social passa a constar nos registros automaticamente depois da cirurgia de mudança de sexo. Na rede particular, o procedimento custa entre R$ 20 mil e R$ 30 mil. Apesar de ser um atendimento que o Sistema Único de Saúde (SUS) cobre, o serviço não é oferecido no DF. ;Nós não entendemos a transexualidade como uma doença, mas é uma situação que pode levar a um distúrbio de adaptação. A inadaptabilidade social da pessoa e o desconforto emocional passam a ser uma preocupação nossa;, explica o secretário adjunto de Saúde, Elias Miziara. Atualmente, o Hospital Universitário de Brasília (HUB) oferece atendimento psicológico a essas pessoas.

Mesmo sem passar pela cirurgia, os transexuais podem entrar na Justiça para provar que vive como o sexo oposto. A educadora Ludymilla Santiago, 30, mudou todos os documentos com o nome que escolheu há dois anos. Depois da alegria em mostrar a carteira de identidade, ela percebeu que ainda precisa da cirurgia para se sentir completa. ;Essas mudanças são preponderantes para mim, mas é muito caro e eu preciso me sustentar. No DF, a coisa é muito precária. Esse processo é sofrido, doloroso;, descreve.

Liberdade
Nem todos os casos de transexuais são permeados por brigas familiares e violência. A história da servidora pública Bianca Moura, 42 anos, logo deve terminar em final feliz: ela é a quarta da fila de espera para a cirurgia em Goiânia. ;Naquele corpo masculino, eu não me sentia à vontade. Aos 25 anos, cheguei ao meu limite de tolerância. Resistia à transformação, porque via aquilo como algo negativo;, lembra. Depois que se afirmou como Bianca, a resposta em casa foi positiva: os parentes a enxergam como mulher. Concursada, ela é respeitada no trabalho e tem a guarda de dois sobrinhos, que cuida como se fossem filhos.

O sentimento de libertação conquistado por Bianca é ponto comum entre todos os transexuais. Vitória, por exemplo, se diverte com cantadas de homens na rua. ;É um reconhecimento. A gente fala tanto em como ser trans é difícil, mas é uma vida muito feliz também;, garante. Outra alegria é poder ajudar aos semelhantes. Segundo Ludymilla, o trabalho é satisfatório diante da esperança de que a sociedade torne-se mais tolerante para as gerações futuras. ;Sou uma minoria mal- aceita. O racismo existe nesse país há 500 anos, essas questões não desapareceram. Mas sou feliz pela luta e pelo empoderamento que isso me deu;, garante.

Para saber mais
Denúncias
Em seis meses, o Núcleo de Atendimento Especializado às Pessoas em Situação de Discriminação Sexual, Religiosa e Racial (Nudin), da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda, atendeu quase o mesmo número de ocorrências registradas em 2011 e em 2012. Nos dois anos anteriores, a média de atendimentos mensal era de 275 casos, sendo 192 ligados ao preconceito sexual e 134 especificamente relacionados a travestis e transexuais. De janeiro a 11 de julho, o Nudin contabilizou 250 atendimentos mensais ; 182 casos de questões sexuais e 127 travestis e transexuais.

O histórico de violência sofrido por essas pessoas envolve transfobia institucional e familiar, prostituição, abuso e exploração sexual e dependência química. De todas as pessoas trans atendidas nos últimos 30 meses, apenas sete conseguiram emprego formal, e a maioria só conseguiu com o apoio do Nudin. O nível de escolaridade costuma ser baixo, e algumas são praticamente analfabetas. A participação dos homens trans também é tímida: apenas quatro procuraram ajuda na secretaria.

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