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Inimigos não só das pragas

Série de artigos publicada na revista Science alerta para o impacto do uso de agrotóxicos, que vai do desequilíbrio ecológico a prejuízos à saúde humana

São mais de 7 bilhões de bocas para alimentar e uma produção agrícola crescendo em ritmo lento. Com 25,7% das crianças em estado de desnutrição, o mundo não pode abrir mão dos pesticidas, substâncias químicas que protegem a lavoura, mas também podem envenenar os ecossistemas. A perspectiva de um mundo ainda mais superpovoado em 2050 ; 9 bilhões de habitantes, de acordo com as estimativas ; e as evidências dos malefícios desses produtos para a saúde das pessoas e para o meio ambiente colocam a ciência em alerta. Em um especial da revista Science, especialistas afirmam que é urgente o desenvolvimento de tecnologias mais seguras, que afastem as pragas sem colocar o planeta em risco.

Clemens Lamberth, bioquímico da suíça Syngenta Crop Protection, uma das maiores produtoras mundiais de agrotóxicos e fabricante de um pesticida banido recentemente pela Comissão Europeia, admite que, ;apesar do arsenal moderno de proteção química disponível para agricultores e fazendeiros, o grande desafio de fornecer segurança alimentar (;) vai testar as capacidades inovadoras da indústria e da academia;. Autor de um dos artigos publicados na Science, ele lembra que, além do crescimento populacional, o mundo passa por um período de eventos climáticos extremos, com desertificação, secas e tempestades, o que aumenta a preocupação sobre a produção de alimentos.

Ao mesmo tempo, as pragas se tornam cada vez mais resistentes, e as ervas daninhas avançam pelos campos. É quase irresistível imaginar que produtos químicos mais pesados poderiam acabar com o problema. Contudo, pesquisas indicam que as substâncias usadas atualmente na lavoura já podem provocar desequilíbrios ambientais graves, mesmo que, nos últimos 50 anos, tenham sido aprimoradas ; hoje, 10g cobrem um hectare, o equivalente a 1% do necessário em 1960. Os efeitos colaterais observados são diversos: vão de alterações hormonais e comportamentais a disfunções na reprodução e extinção iminente de espécies (veja acima).

Abelhas
Em abril, a União Europeia decidiu proibir, por dois anos, o uso dos três pesticidas mais usados no mundo, que estavam dizimando populações de abelhas. A regra, que começa a valer em dezembro, visa a proteger não apenas o inseto, mas a própria segurança alimentar: estima-se que as abelhas sejam responsáveis por 80% da polinização de plantas de interesse agrícola. Sem elas, a produção seria muito prejudicada.

No Brasil, de acordo com Luis Rangel, coordenador de agrotóxicos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no ano passado, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) reavaliou os artigos científicos sobre esses produtos. A conclusão foi que as pesquisas existentes não são suficientes para indicar se eles provocam a morte em massa de abelhas. Enquanto novos estudos são realizados, Rangel conta que algumas medidas têm sido tomadas, como evitar a aplicação em época de florada. O agrônomo lembra que esses pesticidas, da classe dos neonicotinoides, não fazem mal à saúde humana e foram inseridos no mercado justamente para substituir substâncias utilizadas até a década de 1980 que, embora inócuas para o meio ambiente, eram bastante danosas ao homem.

Segundo Kathrin Fenner, bioquímica do Instituto Federal de Tecnologia e Ciências Aquáticas da Universidade da Suíça, o problema é que nem todas as nações em desenvolvimento fazem como o Brasil. Apesar dos planos de expansão agrícola, o país segue as recomendações da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sobre o banimento dos chamados produtos de alto perigo. ;A FAO estima que meio milhão de toneladas de pesticidas obsoletos ainda sejam usadas em regiões em desenvolvimento da Ásia, da África e da América Latina;, conta Fenner, coautora de um dos artigos publicados na Science.

A Índia, por exemplo, permite o comércio dos monocrotofós, agrotóxicos organofosforados responsáveis, em julho, pela morte de 23 crianças. Os estudantes de 4 a 14 anos convulsionaram logo após comerem batatas tratadas com esse produto químico. Acusado de ter sucumbido ao lobby dos fabricantes, o governo indiano afirmou que o controle do pesticida é rígido, mas não convenceu a FAO. ;Os produtos altamente perigosos não devem estar disponíveis para os pequenos agricultores, que não têm o conhecimento e os pulverizadores adequados;, divulgou o órgão da ONU, em um comunicado.

Controle biológico
Estima-se que 2,5 milhões de toneladas de ingredientes pesticidas sejam aplicados anualmente em todo o mundo. O Brasil é o maior usuário desses produtos, com um mercado de quase US$ 10 bilhões, sendo US$ 2 bilhões referentes apenas ao controle da ferrugem da soja. A doença, registrada em plantações de todas as regiões do país, inviabilizaria a produção de uma das mais importantes commodities brasileiras, caso não houvesse proteção contra o fungo Phakopsora pachyrhiz.

O coordenador de agrotóxicos do Mapa afirma que a saída é o manejo integrado, no qual os pesticidas biológicos entram na estratégia de controle, diminuindo gastos financeiros e a toxidade das aplicações. Luis Rangel conta que esses produtos têm sido usados de forma intensa nas plantações de cana-de-açúcar, para combater o fungo e a lagarta. ;E não é por serem sustentáveis; os produtores precisam disso para diminuir os custos;, diz. Os pequenos agricultores também têm aderido a essa alternativa ; para Rangel, é um reflexo da pressão social. ;As pessoas não aceitam mais produtos com alto nível de perigo;, acredita.

Esses pesticidas ainda representam uma pequena fatia do mercado, mas políticas de incentivo conseguiram aumentar a participação que era de 1,5% em 2008 para 5% atualmente. A meta é chegar a 10% em 2020. Rangel destaca a importância da adesão às substâncias biológicas nos pontos de revenda, onde os agricultores adquirem os pesticidas. Ele acredita que, ao perceberem que precisarão gastar menos com a aplicação dos químicos, mais caros, os produtores sejam convencidos.

Embora reconheça que os pesticidas biológicos resolvem o problema da toxidade, o bioquímico Lawaence P. Wackett, da Universidade de Minnesota, acredita que a solução ainda está longe. ;Nós não conhecemos completamente os efeitos dos inseticidas na vida selvagem. Apesar de os biológicos não apresentarem danos diretos, há evidências de que provocam distúrbios na interação entre predadores e presas;, sustenta. ;Apesar dos esforços para aumentar a especificidade dos inseticidas, ainda não há um composto que ataca a praga sem afetar a vida ao redor. É isso que a ciência precisa alcançar;, acredita.

Mal de Parkinson

Também na edição desta semana da Science, Freya Kamel, pesquisadora dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, assina um comentário no qual defende a necessidade de se intensificar os estudos sobre a associação entre pesticidas e o mal de Parkinson. Há diversos artigos científicos que mostram a relação entre o uso de produtos nas plantações e o risco aumentado de desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, mas até agora ninguém sabe dizer qual é a ligação exata entre os dois fatores.