postado em 19/02/2014 14:00
A instalação Estou aqui, mas nada é montada com mobiliário local e reproduz a angústia vivida durante as crises de transtorno de personalidade da artista, que tem a sensação de ausência do próprio corpo |
É difícil pensar em dor quando se adentra qualquer uma das instalações da japonesa Yayoi Kusama. Delicadeza, conforto e risada são as reações mais comuns à obra da artista. No entanto, é da dor que nasce o trabalho dessa japonesa de 84 anos, que há quatro décadas decidiu morar em uma instituição psiquiátrica. Diagnosticada com desordem da personalidade e transtorno obsessivo compulsivo, Kusama vive em um hospital desde 1977 e mantém um ateliê que frequenta durante a semana.
Dessa combinação peculiar de rotinas, saiu boa parte dos trabalhos de Obsessão infinita, exposição em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Uma retrospectiva abrangente, a mostra reúne trabalhos criados entre 1950 e 2013. Boa parte dessa produção, selecionada pelos curadores Philip Larratt Smith e Frances Morris, representa o que há de mais emblemático na trajetória da japonesa.
Yayoi Kusama é hoje uma queridinha da cena artística e do mundo fashion. A japonesa ganhou o planeta com suas bolinhas obsessivamente reproduzidas em desenhos, pinturas, esculturas, instalações, objetos e até artigos de moda.
Uma parceria com a Louis Vuitton rendeu uma série de estampas para bolsas e roupas. Mas nem sempre foi assim. Durante um bom tempo, Kusama era vista pela cena artística como popular demais para ser séria. E vanguarda demais para ser compreendida. Foi na Nova York dos anos 1960 que ela encontrou eco para sua produção. Em uma cena marcada pelo experimentalismo, por uma arte performática e extremamente conceitual, na qual cabia todo tipo de representação, a artista se sentiu à vontade para deixar a fronteira entre arte e loucura desaparecer por completo.
Alucinação
As bolinhas recorrentes na produção de Kusama são as mesmas que ela enxerga durante as alucinações. Repeti-las incessantemente ajuda a se livrar de uma obsessão, mas também a se expressar. Na sala dos espelhos ; duas nesta exposição do CCBB ; está representada outra alucinação: a do transtorno de despersonalização.
Durante as crises, Kusama tem a sensação de não estar presente em seu corpo e de se projetar para outros espaços. As salas espelhadas funcionam como uma representação dessa experiência. A aversão ao sexo e à comida fez a artista produzir séries de esculturas com acumulações de pênis e comidas. Nas pinturas, as repetições coloridas, na maioria das vezes abstratas, vez ou outra são invadidas por rostos, espermatozoides, animais não identificados e objetos femininos como bolsas e sapatos. Tudo muito discreto e quase imperceptível.
O bom humor, o colorido e a explosão de luzes levam o público à sensações de conforto e alegria bem distantes do sofrimento experimentado pela artista durante as crises. ;O sofrimento dela a torna aberta e sensível à beleza. Ela faz uma arte eufórica e bonita exatamente porque não consegue atingir esses estados de nenhuma outra forma;, explica Smith.
Presença
Kusama raramente comparece à abertura das exposições. Esteve em Nova York e em Londres nos últimos anos para duas retrospectivas, mas não veio ao Brasil nem à Argentina, onde Obsessão infinita foi montada antes de desembarcar no Rio de Janeiro e em Brasília.
Smith, que foi arquivista de Louise Bourgeois, esteve com a japonesa uma vez no ateliê, no Japão, e outra durante as montagens das exposições nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ele conta que Kusama costuma brincar com a questão da personalidade. Ela pode se apresentar vestida de maneira excêntrica e encenar uma personagem de seu mundo de bolinhas ou como uma pessoa comum. A depender do estado de espírito, encontra-se uma figura performática ou uma artista introspectiva.
À demora em ser reconhecida como uma das maiores artistas contemporâneas do Japão, Smith credita o fato de ser mulher. ;Isso acontece com as artistas mulheres: elas se preservam mais, levam mais tempo para se mostrar, se expor;, acredita. Veja abaixo em que ficar de olho na exposição de Yayoi Kusama.
Obsessão infinita
Exposição de Yayoi Kusama. Em cartaz até 28 de abril, de quarta a segunda, das 9h às 21h, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
A sala de espelhos mais recente da artista exibe centenas de flashes de luzes coloridas: reflexos são metáforas das alucniações |
ENTREVISTA ; Philip Larratt-Smith
Quais são as fronteiras entre vida e arte no trabalho de Kusama?
O trabalho de Kusama é incategorizável e inclassificável, por isso mesmo alguns períodos beiram uma familiaridade com as tendências contemporâneas do mundo da arte. Há um consenso de que uma experiência de vida singular repousa por trás do processo de fazer arte ; a de que Kusama tem uma perspectiva única do mundo que ela comunica por meio do trabalho. Ela pertence à mesma tipologia de artistas como Francis Bacon, Louise Bourgeois, Vincent Van Gogh e Edvard Munch. Por essa tipologia do artista singular, a linha entre arte e vida é frequentemente muito porosa ; quando não desaparece completamente.
Obsessões e um pouco de loucura são bons para a arte em geral?
O artista tem que ser destemido. Ele tem que arriscar ser vulgar, de mau gosto, provocativo, escandaloso, detestável para que possa se expressar. Artistas tendem a ter um senso de jogo bastante desenvolvido que pode ser transgressor em si mesmo. Etéreo, calmo, meditativo são algumas palavras usadas pelos visitantes para descrever o que sentem no trabalho da Kusama. E isso é tão distante do sofrimento mental.
Por quê?
Apenas porque é lógico que o impulso da Kusama para fazer esses trabalhos deveria ser radicalmente diferente de como eles aparecem para o público. Se ela está lutando para comunicar algo etéreo, calmo e meditativo, talvez seja porque dificilmente experimenta esse tipo de estado de espírito.
A vida depois da morte é uma ideia presente no trabalho da Kusama?
Ela sempre quer estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ser o centro das atenções e então desaparecer completamente. Morte é um de seus temas mais importantes, ancorado simultaneamente na ansiedade e na vontade de ter paz. O contraditório e até paradoxal caráter de suas ideias sobre a morte são evidentes em todos os lugares. O barco com falos encrustados em Andando no mar da morte certamente parece sugerir um caixão funerário e a jornada do cruzamento do rio Styx na mitologia grega.
Kusama gosta de dizer que a instalação de bolas lembra os seres humanos no espaço |
Fique de olho
Sala de espelhos do infinito ; Campo de falos
Sala de espelhos do infinito ; Cheia com o brilho da vida
A primeira sala de espelhos data de 1975 e é fruto de uma radicalização do trabalho de Kusama. Do chão, brotam esculturas de tecido em formato de pênis estampados com bolinhas. A segunda sala é mais recente: foi feita em 2011 e, ao contrário do branco que explode da primeira, aqui o público fica no escuro enquanto 279 flashes de luzes de bolinhas coloridas transformam a sala em um espaço alucinante. O espelho é uma metáfora das sensações de Kusama durante suas alucinações.
Estou aqui, mas nada
A instalação reproduz uma sala de estar pontuada por feixos de luz em formato de bolinhas coloridas. A cada nova montagem da exposição, a sala ganha uma configuração com móveis e objetos locais. Tudo nela é familiar e está no lugar certo, mas a sensação de ausência que invade a artista durante as crises é viva. Em um vídeo, Kusama desaparece entre girassóis.
A auto-obliteração de Kusama
No vídeo realizado em 1967, a artista é uma espécie de comandante, diretora e mestre de um grande happening. O espírito das vanguardas da Nova York dos anos 1960 está na ação que ela exige de seus atores: todos estão nus e dançam cercados por obras de arte como se protagonizassem uma intensa alucinação. ;Ela gostava de fazer essas performances nas quais era uma espécie de sacerdotiza;, explica o curador, Philip Larratt-Smith. O esquecimento sugerido no título do trabalho é também uma metáfora do transtorno de personalidade da artista. Smith selecionou ainda outro vídeo ; Walking piece ; no qual Kusama empreende uma performance pelas ruas de Nova York. Vestida com o quimono típico da cultura japonesa, ela encarna a estrangeira deslocada ao cruzar esquinas de uma das maiores metrópoles do planeta.