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O fim da dor que não deveria existir

Técnica inovadora que mistura diferentes tecnologias obtém sucesso contra a síndrome do membro fantasma, sensação incômoda que afeta cerca de 70% das pessoas com membro amputado

Em 1965, um trabalhador rural sueco sofreu um acidente que lhe tirou metade do braço direito. Além de precisar se adaptar a uma nova forma de vida, o homem, hoje com 72 anos, passou a sofrer com dores constantes que muitas vezes beiravam o insuportável. E onde doía? Exatamente na parte que não estava mais presa a seu corpo. Mesmo depois de amputados, a mão e o antebraço o incomodavam muito, a ponto de não deixá-lo dormir várias noites.

O fenômeno, apesar de parecer estranho, já é conhecido da medicina. Chamado de dor fantasma ou síndrome do membro fantasma, afeta cerca de 70% das pessoas amputadas. O problema ainda tem suas causas estudadas (leia mais ao lado) e costuma ser combatido com técnicas como a terapia do espelho, a hipnose, a acupuntura e medicamentos. Mas, para muitos pacientes, essas abordagens não são eficazes. É o caso do cidadão sueco, que, por 48 anos, teve de conviver diariamente com a dor no membro perdido, até se tornar voluntário em um experimento conduzido no ano passado na Universidade Técnica Chalmers e cujos resultados foram descritos recentemente na revista Frontiers in Neuroscience.

Ao participar da pesquisa, coordenada por Max Ortiz-Catalan, o paciente, que não teve a identidade revelada, foi o primeiro a experimentar um método que lança mão da realidade virtual para enganar o cérebro e combater a dor fantasma. Com a técnica, ele podia ver sua imagem no vídeo complementada por um braço virtual. E o melhor: conseguia mover o membro de mentira, como se ele fizesse parte de seu corpo.

O segredo está na eletromiografia, tecnologia que usa eletrodos colados à pele para captar o sinais musculares. Presos na parte preservada do braço do voluntário, esses sensores enviavam os sinais para um computador, que, munido de complexos algoritmos, os interpretava e os transformava em movimentos do braço virtual na tela. Dessa maneira, o homem tentava mexer o membro perdido e via que sua intenção se concretizava no vídeo.

Jogo

Os pesquisadores, pediram, então, que ele jogasse um game de corrida no qual, para comandar o carrinho, precisava utilizar o membro virtual. Depois de algumas semanas de prática, a dor fantasma diminuiu consideravelmente, melhorando a qualidade de vida do paciente (veja infografia acima). ;Essa é a primeira vez que alguém utiliza a realidade aumentada e padrões mioelétricos de reconhecimento para tratar a dor no membro fantasma. Estamos prontos para iniciar um teste clínico com três hospitais suecos e alguns outros na Europa. No entanto, se algum pesquisador brasileiro tiver interesse em desenvolver essa pesquisa, peço que entre em contato. Eu adoro o Brasil e ficaria muito feliz em contar com a colaboração de cientistas brasileiros;, diz ao Correio Ortiz-Catalan, que é mexicano.

De acordo com o pesquisador, o alívio experimentado pelo paciente é gerado por uma combinação de reativação de áreas motoras do córtex e de feedback visual. O conjunto é responsável por fazer com que o cérebro acredite que os comandos motores estão realmente sendo executados. Ortiz-Catalan está desenvolvendo outros games para serem adotados na nova terapia. A ideia é que a tecnologia seja comercializada e possa ser aproveitada por pacientes em suas próprias casas. ;Não acredito que ela será cara. Nós até construímos um sistema doméstico, e os pacientes o têm utilizado de forma independente, sozinhos em casa, já há algum tempo;, conta.

Além de obter um resultado muito promissor no tratamento da dor fantasma, o trabalho de Ortiz-Catalan apresenta um uso inovador da realidade aumentada, na opinião de Hamilton Pereira da Silva, professor mestre de engenharia elétrica e informática industrial da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFP). ;Eu ainda não tinha visto nenhum trabalho assim. O uso da realidade aumentada tem uma aplicação interessante para solucionar os problemas psicológicos gerados pelas amputações e até mesmo defeitos congênitos;, elogia o brasileiro, que não participou do estudo.

Atualmente, Silva desenvolve com outros pesquisadores da UTFP uma mão robótica que usa a eletromiografia para permitir o controle pelo usuário. ;A aplicação da tecnologia vai até o limite da imaginação humana. Uma pessoa que é surda pode utilizar a realidade aumentada para se orientar e se comunicar. Na medicina, já é uma realidade. O treinamento de médicos é feito com operações virtuais de forma que nem sempre é necessário usar cobaias;, lembra.

Palavra
de especialista

Tecnologia multiúso

;Basicamente, a ideia de realidade aumentada é captar alguma imagem, por câmera, por exemplo, e projetá-la. Essa já é muito utilizada na vida prática por algumas empresas. É possível simular uma planta de um espaço e projetá-la em 3D para que o cliente possa ver a casa, como ela vai ficar. Dependendo da utilização, pode ser cara ou não. Há um caso de um prédio inteiro que foi simulado virtualmente para que os clientes e investidores o vissem de cima, no terreno, enquanto sobrevoavam o local com helicóptero. Aí, o investimento é maior. Mas há coisas simples. Uma empresa de óculos utilizou, pelo site, a captura da imagem do cliente pela câmera do computador para simular como o produto ficaria no rosto dele. Os valores vão depender do tipo de aplicação.;

Pedro Luiz de Paula Filho,
professor doutor em ciência da computação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Ilusão

A terapia do espelho foi adotada a partir dos anos 1990. Nela, o paciente que teve uma perna ou um braço amputado se posiciona em frente a espelhos, tendo a ilusão de que ele ainda possui os dois membros saudáveis. Assim, ele é pedido para tentar mover as duas pernas ou os dois braços ao mesmo tempo, vendo no espelho ambos se mexerem.
A estratégia engana o cérebro e a sensação incômoda diminui em algumas pessoas.