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Um exército de cirurgiões invisíveis

Pesquisadores conseguem controlar nanomotores no interior de células vivas. A técnica poderá ser usada, no futuro, para o tratamento do câncer e de outras doenças

Roberta Machado
postado em 12/03/2014 16:00


De dentro para fora, célula por célula, com uma precisão microscópica. Assim serão os procedimentos médicos do futuro, que permitirão cirurgias intracelulares realizadas com equipamentos nanométricos. As cápsulas médicas invisíveis a olho nu, hoje usadas para levar medicamentos até regiões específicas do organismo, em breve poderão ser controladas como um verdadeiro exército de pequenos robôs capazes de detectar e combater doenças. A ideia, que mais lembra o filme de ficção da década de 1960 Viagem fantástica, começa a se tornar realidade graças a um projeto da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

Químicos e engenheiros da instituição desenvolveram pequenos motores de apenas 300 nanômetros (um nanômetro corresponde a um milionésimo de milímetro) que podem se mover no interior das células. Para impulsioná-los, os cientistas usam ondas de ultrassom e, para guiá-los, campos magnéticos. Os testes foram realizados em células HeLa, muito utilizadas em experimentos científicos. Pela primeira vez, essas minúsculas máquinas circularam no interior das estruturas vivas. Até agora, elas só haviam sido testadas em instrumentos de laboratório.

As nanopartículas direcionáveis são como pequenos bastonetes com o formato similar ao de um foguete, que respondem às ondas acústicas graças ao seu formato, projetado para sofrer uma diferença de pressão sob a ação dessa frequência. As ondas ultrassônicas e o magnetismo usados para guiar os pequenos motores não afetam as células, mas permitem que os motores assumam diferentes papéis: eles podem agir como uma batedeira, transformando o interior celular em uma mistura homogênea, ou como uma bola de demolição, pronta para investir contra a parede celular e destruí-la.

Essa habilidade, acreditam os responsáveis pelo estudo, pode ser usada no futuro para o tratamento de câncer e outras doenças. Um longo caminho, no entanto, ainda precisa ser percorrido. ;Esses microrrobôs precisariam se comunicar uns com os outros e com o mundo exterior, sentir seus arredores, entregar drogas e matar células conforme necessário;, estima Tom Mallouk, principal autor do trabalho. Depois de serem injetados no paciente e tratá-lo a nível celular, esses pequenos equipamentos poderiam simplesmente se autodestruir ou serem eliminados pelos rins.

Tendência

Outros projetos de cápsulas intracelulares já desenvolvidos dependiam de receptores para detectar e se ligar às células doentes e não tinham a precisão e a liberdade de um equipamento móvel. A própria equipe da Universidade da Pensilvânia trabalha em versões rudimentares de nanomotores há mais de uma década, mas os modelos que precederam o atual eram impulsionados por compostos químicos nocivos ao organismo, logo inviáveis para uso em células vivas.

Uma pesquisa brasileira realizada há 10 anos chegou a propor o uso de um simulador virtual para projetar nanorrobôs como esses, uma tecnologia que até hoje tem resultados pouco previsíveis dentro de um ambiente orgânico. O software nacional, criado por Adriano Cavalcanti, mostrava como uma peça equipada com sensores acústicos poderia desviar de obstáculos e evitar ataques do sistema imunológico humano. ;Uma preocupação constante para os pesquisadores da área de nanorrobôs é a execução física e o controle dentro de um organismo vivo;, ressalta Luiz Carlos Kretly, professor do Departamento de Micro-ondas e Óptica da Universidade de Campinas (Unicamp) e orientador do trabalho que resultou no programa de simulação.

Kretly explica que os nanoexércitos sofrem sob as forças intensas dos fluidos corporais e que grande parte das cápsulas investidas em um tratamento podem ser vistas como corpos invasores e acabarem destruídas. Mas ele acredita que pesquisas na área devem tornar intervenções mecânicas nas células mais fáceis e popularizar procedimentos como a introdução de drogas farmacêuticas no organismo por meio dos microrrobôs motorizados sem os efeitos colaterais associados ao tratamento convencional. ;A medicina, usando técnicas de nanoengenharia e interferindo no interior das células, é uma tendência que veio para se consolidar nesses próximos 10 ou 20 anos;, prevê.

Precisão

As nanopartículas já são usadas no combate a doenças como o câncer, pois têm o potencial de tratar o paciente sem afetar as células saudáveis. As cápsulas produzidas atualmente são projetadas para interagir somente com os tumores, onde depositam o medicamento. Mas os nanomotores guiáveis criados na Universidade da Pensilvânia têm a capacidade de se mover individualmente, o que significa que eles podem buscar e interferir em um maior número de células sem interferir nos arredores de seus alvos, abrindo novas possibilidades para formas inovadoras de terapia e diagnóstico.

;Com esse movimento, ele pode entrar em organelas mais facilmente, desintegrar-se e liberar o fármaco dentro da célula. Pode, por exemplo, gerar calor e matar uma célula tumoral, como já fizemos aplicando luz;, enumera Valtencir Zucolotto, coordenador do Laboratório de Nanomedicina e Nanotoxicologia do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). ;O que vai ser feito agora depende da imaginação dos autores da pesquisa;, resume o especialista brasileiro.

O movimento dos nanomotores, no entanto, ainda não é perfeito como o de um submarino: ;Vimos que os motores, que nadam mais ou menos em linha reta na água, seguiram um caminho muito tortuoso nas células, porque eles constantemente batiam contra organelas subcelulares;, descreve Tom Mallouk. Por enquanto, os minúsculos robôs podem ser usados somente para intervenções puramente mecânicas dentro das células, como a ruptura de membranas ou movimentos projetados para induzir reações na matéria viva.

Jornada no corpo

A equipe responsável pela criação dos nanomotores comparou a invenção ao filme Viagem fantástica. Lançada em 1966, a película surpreendeu pelos efeitos especiais, que tentavam reproduzir as células e os tecidos do corpo humano. O roteiro conta a história de um grupo de pessoas que usam o submarino Proteus para entrar no organismo
de um cientista e salvar sua vida. O veículo é temporariamente miniaturizado e injetado no homem, e os heróis têm uma hora para drenar
um coágulo no cérebro do homem. A ideia serve até hoje de referência para diversas séries de televisão (e cientistas), sendo adaptada de um livro escrito sob encomenda pelo mestre da ficção científica Isaac Asimov.

Para saber mais

Células imortais

As células HeLa são a linhagem celular mais usada em pesquisas científicas. Elas derivam de células cancerosas retiradas em 1951 de Henrietta Lacks, uma mulher negra que morreria da doença no mesmo ano. O material foi reproduzido e é usado até hoje por sua durabilidade ; por motivo não explicado, elas sobrevivem fora do organismo humano e não param de se reproduzir.

As células HeLa já foram usadas em estudos como o desenvolvimento da primeira vacina contra a poliomelite e em importantes pesquisas de mapeamento de genes, Aids e câncer. Durante décadas, o material serviu à ciência sem autorização de Henrietta ou de seus familiares, pois, na década de 1950, as leis americanas não exigiam o consentimento dos familiares para coletar amostras celulares.

Em agosto do ano passado, autoridades de saúde dos Estados Unidos anunciaram que, finalmente, chegaram a um acordo com a família de Lacks para o uso continuado, embora controlado, de dados genéticos das células.

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