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O brasileirão a serviço da Arena

Nos anos 1970, a distribuição de vagas no Campeonato Nacional era feita para agradar ao partido que sustentava o governo militar. Modelo sufocou financeiramente os grandes clubes

postado em 31/03/2014 16:00
Jogadores do Inter comemoram gol contra o Cruzeiro, no Mineirão, pelo Nacional de 1979: grandes se rebelaram e só entraram na terceira fase (Arquivo EM/D.A Press - 5/12/79)
Jogadores do Inter comemoram gol contra o Cruzeiro, no Mineirão, pelo Nacional de 1979: grandes se rebelaram e só entraram na terceira fase


Edição do Campeonato Brasileiro com maior número de participantes da história, incríveis 94 times, o Nacional de 1979 esteve muito perto de não ser realizado. Por causa de uma revolta organizada pelos grandes clubes do país, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) só conseguiu divulgar a tabela do torneio nove dias antes do início, em 16 de setembro daquele ano. Foi o auge de uma insatisfação crescente ao longo da década, causada por seguidas ações da principal entidade do esporte nacional em prol da Arena, partido político que sustentava o governo militar.

Em 1979, o Nacional tinha se transformado num monstro disforme, com regulamento esdrúxulo e 583 partidas em um período de três meses, entre setembro e dezembro. A divulgação da tabela inicial, no fim de agosto, deu início à rebelião dos grandes. Mineiros, gaúchos e cariocas exigiram mudanças. Os paulistas tentaram boicotar, e Corinthians, Santos e São Paulo se recusaram a participar da competição.

Os dirigentes chegaram a elaborar a ;Carta do Rio de Janeiro;, na qual pediam um calendário anual definido previamente, um Nacional com 20 clubes na primeira divisão e maior auxílio da Loteria Esportiva. Estavam fartos de que a CBD ; extinta no fim daquele ano para dar lugar à CBF ; utilizasse o Brasileiro para beneficiar a Arena, prática que ficou clara, principalmente, a partir de 1975, quando o almirante Heleno Nunes assumiu a entidade no lugar de João Havelange.

;É dessa época o bordão ;Onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional;;, explica Antônio José Barbosa, doutor em História pela Universidade de Brasília. ;A própria criação do Campeonato Brasileiro, em 1971, que quase foi chamado Campeonato da Integração Nacional, foi um ato idealizado pelos militares para dar continuação à popularidade que tinham conseguido pelo esporte depois da Copa de 1970;, recorda o historiador, em referência à exploração da conquista da Seleção Brasileira no México pelo governo de Emílio Garrastazu Médici.

Sob o comando de Heleno Nunes, o Nacional teve uma escalada de participantes ao longo de cinco anos, de 42 em 1975 até os 94 de 1979. Em 1978, por exemplo, quando 74 equipes jogaram o torneio, a CBD determinou que qualquer cidade com mais de 100 mil habitantes e estádio aprovado para jogos noturnos teria direito a uma equipe no Brasileirão.

Viagens

O sistema de distribuição dos grupos acabava prejudicando os clubes grandes, obrigados a fazer viagens pelo país justamente para agradar aos nanicos. ;Os militares usavam o futebol para angariar simpatia popular e os grandes clubes tinham dificuldade de se adaptar a esse novo cenário;, afirma Carlso Miguel Aidar, dirigente do São Paulo na época, quando o pai, Henri Couri Aidar, ocupava a presidência. ;Éramos obrigados a fazer viagens longas e caríssimas.;

Francisco Horta, presidente do Fluminense entre 1975 e 1977, diz que o clubes sofriam com o excesso de número de jogos. ;Foi naquela época que criamos a sala de preparação física no Fluminense, para que os jogadores aguentassem aquelas maratonas. Mesmo assim, o prejuízo era enorme com viagens, hotéis, concentrações;, enumera.

;Em 1978, jogamos até durante a Copa do Mundo. Algumas partidas tiveram público ridículo;, recorda Nelson Olmedo, vice-presidente de futebol do Grêmio de 1977 a 1978. Ele diz que, nos anos 1970, os clubes dependiam das rendas dos jogos, o que tornava as viagens pelo país onerosas. ;Não havia cotas de tevê, não havia vendas de camisas. O primeiro contrato que fiz com uma fornecedora de material esportivo, a Olympikus, foi em troca de 40 sacolas para carregar os uniformes.;

Com a crescente insatisfação dos clubes, a CBD tentou acalmar os ânimos no fim da década, criando chaves regionais em 1978 e em 1979, pagando parcialmente passagens aéreas e hospedagens e eximindo os clubes da taxa de 5% da renda de bilheteria. Mesmo assim, com os clubes à beira da falência, os dirigentes se rebelaram e conseguiram impor algumas mudanças a partir de 1980, quando o Nacional voltou a ter ;apenas; 44 clubes. ;Foi um grito de desespero por necessidade de sobrevivência;, resume Aidar.

Loteria
Como forma de promover o Campeonato Brasileiro, que seria disputado a partir de 1971, o regime militar adiantou-se. Um ano antes, fez os primeiros testes para o lançamento da Loteria Esportiva Federal, aprovada ainda em 1970. Em uma propaganda oficial, com a imagem do presidente Médici, convocava a população a apostar. Por meio da loteria, coube ao Estado estabelecer um ranking de clubes, em ordem decrescente de valores a serem destinados. Juntos, os 42 times de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais ficavam com 49,96% do faturamento. Os 161 clubes do restante do país dividiam 50,04% dos recursos.


94
Número de times que participaram de Campeonato Brasileiro de 1979
Porto Alegre usou futebol para se rebelar
Quando a insatisfação com o regime militar começava a despontar pelo país, um estádio de futebol tornou-se palco inesperado de uma manifestação popular. Em 1972, o primeiro levante da população do Rio Grande do Sul no período de exceção foi testemunhado no Beira-Rio, motivado pela ausência de gaúchos na convocação da Seleção Brasileira para a Taça Independência, um torneio amistoso. Para resolver a ;desfeita;, a Federação Gaúcha de Futebol (FGF) desafiou o Brasil para um duelo. De amistoso, restou só o nome.

;Os jogadores do eixo Rio;São Paulo não estavam nem aí. Até perguntaram, quando fizemos o primeiro gol, o que nos motivava tanto, por que estávamos tão irados;, recorda o zagueiro Ancheta. Atleta do Inter, naquele dia o uruguaio também saiu aplaudido por torcedores do Grêmio. ;Em uma conversa na minha casa, o Torino (ex-meia do Grêmio) comentou que seria um jeito de pisar no calo dos militares. É uma pena que (o presidente Emílio) Médici não estivesse presente naquele dia;, lamenta.

Apoiada por 107 mil torcedores, maior público da história do Beira-Rio, a seleção gaúcha teve o lateral-esquerdo gremista Everaldo, titular da Copa de 1970 e primeiro gaúcho campeão do mundo, mas esquecido por Zagallo para a Taça Independência. Contra a Seleção Brasileira, fez um jogo de pouca inspiração. Everaldo morreria dois anos depois, em um acidente de carro em Santa Cruz do Sul (RS), sem nunca ter comentado sobre o assunto ; semanas depois, ele teria sido candidato a deputado estadual pela Arena, partido que dava suporte ao regime militar.

Revanchismo

O clima era tenso antes mesmo de o amistoso começar. ;Não haverá jogo de compadres;, afirmou o lateral gremista Valdir Espinosa, ao entrar em campo. ;Vamos dar tudo em matéria de futebol;, insistiu o atacante colorado Claudiomiro. Então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange proibiu jogadores da Seleção de falarem sobre isso, depois que Zagallo condenou o revanchismo da partida.

O confronto terminou empatado: 3 x 3. Tovar, Carbone e Claudiomiro marcaram os gols gaúchos; Jairzinho, Paulo Cézar Caju e Rivellino, os brasileiros. O placar, contudo, foi o item menos importante de um dia no qual bandeiras brasileiras foram queimadas e o Hino Nacional recebeu vaias. ;Uma notícia que, obviamente, a censura não permitiu que a imprensa divulgasse;, ressalta Cesar Guazzelli, mestre em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo o historiador, esse foi o principal momento de insurgência contra a ditadura militar em Porto Alegre. ;As manifestações tinham de ser construídas em outros espaços, que não políticos. Os anos 1970 viram a revalorização da mitologia do gaúcho, então era claro que, em algum momento, haveria insurreição contra os governadores nomeados pelo governo militar;, comenta Guazzelli.
Para a Copa de 1974, dois atletas do Inter foram chamados. Carpegiani e Valdomiro foram titulares na campanha do quarto lugar.

"Em nenhuma concentração do país algum jogador teria coragem de falar de política. Alguns, por medo. Mas a maioria, na verdade, não sabia nada do que acontecia fora do gramado;

Ancheta,
zagueiro da Seleção Gaúcha



FICHA

17 de junho de 1972

SELEÇÃO BRASILEIRA 3 X 3 SELEÇÃO GAÚCHA


SELEÇÃO BRASILEIRA
Leão (Sérgio); Zé Maria, Britto, Vantuir e Marco Antônio; Clodoaldo e Piazza; Paulo Cézar Caju, Jairzinho, Leivinha e Rivellino.
Técnico: Zagallo

SELEÇÃO GAÚCHA
Schneider; Espinosa, Ancheta, Figueroa e Everaldo; Carbone, Tovar e Torino; Valdomiro, Claudiomiro e Obberti (Mazinho)
Técnico: Aparício Silva

Gols: Tovar, Jairzinho, Carbone, Paulo Cézar Caju, Claudiomiro e Rivellino

Árbitro: Robert Helies (França)

Público: 107.000 pessoas

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