postado em 22/05/2014 14:00
Embora fosse filho único de classe média baixa, havia um piano na sala da casa, herança da avó paterna. O pai era músico profissional, do tempo em que se tocava ao vivo a trilha sonora dos filmes do cinema mudo. Quando se casou, deixou a música por um emprego mais seguro, foi ser postalista dos Correios e Telégrafos - o profissional que separa as correspondências por região da cidade.
Do pai, Lelé herdou o gosto pela música. Tocava piano e acordeão em bailes - instrumento que o levou à boemia. Ao mesmo tempo, foi o recurso de que dispôs para cuidar de si e da mãe quando o pai morreu precocemente, aos 59 anos, de câncer do pulmão.
O homem discreto, solidário, afetuoso era um arquiteto tecnológico, mas de uma tecnologia comprometida com a funcionalidade e com a qualidade de vida dos usuários dos edifícios e dos equipamentos urbanos que projetava - a maioria deles, pacientes de hospitais. Uma das mais belas obras de Lelé é um centro de reabilitação do aparelho locomotor plantado à margem do Lago Norte.
Se Oscar Niemeyer gostava de repetir que a arquitetura deveria causar espanto, foi Lelé quem produziu - durante toda a vida profissional - uma arquitetura espantosa, por ser conectada com o tempo tecnológico e comprometida com a responsabilidade social. E ao mesmo tempo moderna. Chegou a projetar conjuntos para o programa Minha Casa, Minha Vida, mas suas ideias não casaram com as do atual governo petista. ;A solução era diferente, nova. Para manter as populações todas nos bairros e não removê-las, como acontece;, declarou à repórter Clara Campoli, do Correio, em 2012.
Foi Brasília quem ensinou a João Filgueiras Lima o senso de compromisso social. Arquiteto recém-formado, desenhista no Instituto de Assistência e Previdência dos Bancários (IAPB), Lelé se apresentou ao chefão: "Que coragem, hein, rapaz", comentou Niemeyer diante daquele que viria a ser um de seus mais valiosos colaboradores e um dos grandes e mais fiéis amigos. Quando Brasília reagiu ferozmente contra a construção da Praça da Soberania, na Esplanada dos Ministérios, Lelé escreveu um texto em defesa do amigo. Fiel, como o quê.
Outro encontro que dividiu as águas do destino de Lelé foi com o ortopedista Aloysio Campos da Paz. Vítima de grave acidente de carro, quando vinha do Rio para Brasília, em 1963, o arquiteto e a mulher, a também arquiteta Alda Rabello Cunha, foram internados no então Hospital Distrital (hoje Hospital de Base). Campos da Paz coordenava a unidade de ortopedia. O tratamento, o gosto pela música (o arquiteto no piano, o ortopedista no pistom) e o compromisso com o bem-estar do ser humano uniram esses dois homens para o resto da vida. Houve desentendimentos, que acabaram com trocas de flores (literalmente).
Em parceria com Oscar Niemeyer, Athos Bulcão e Darcy Ribeiro, Lelé projetou algumas das mais grandiosas, inteligentes, funcionais, sociais e belas obras de Brasília. Com Oscar, fez o Minhocão e o Quartel-General do Exército, por exemplo; com Athos Bulcão, as unidades da Rede Sarah; com Darcy, o Beijódromo.
A produção de Lelé não pode ser alinhada numa só lista de obras projetadas e executadas, como se faz com qualquer outro arquiteto, consagrado ou não. A fortuna crítica da obra de João da Gama Filgueiras Lima divide os projetos por afinidade tecnológica. Obras nas quais foram aplicados materiais pré-fabricados pesados em concreto armado; obras com pré-fabricados leves em argamassa armada; obras com industrialização em aço, plástico e argamassa armada. (Imagens de sua obra serão expostas na Bienal de Veneza deste ano, como parte do panorama da arquitetura moderna brasileira).
O Lelé da arquitetura feita com materiais pré-fabricados também nasceu em Brasília. ;Nós tínhamos de fazer alojamentos para os operários que estavam chegando do Brasil inteiro. Tínhamos de fazer casa para os engenheiros, para os administradores. E tudo de madeira. Aí entrou o pré-fabricado porque, se fôssemos fazer aquilo de forma artesanal, não acabaríamos nunca;, contou ele à repórter Cynara Menezes no livro O que é ser arquiteto (coleção Memórias Profissionais, da editora Record, 2004).
Na década de 1980, Lelé fechou o escritório particular em Brasília e se arriscou numa empreitada tão arriscada quanto utópica. Construiu em Abadiânia (GO), a 134km do Plano Piloto, uma miniusina de pré-moldados leves em argamassa armada a fim de erguer escolas rurais e pontes para estradas vicinais. Como pano de fundo, formava operários para a tecnologia a serviço das populações carentes e da viabilidade urbana. ;Por incrível que pareça, acho que meu maior sucesso profissional foi nessa cidadezinha de Goiás, porque houve um envolvimento total das pessoas.; A experiência de Abadiânia só foi possível por conta do entusiasmo do então reitor da UnB, frei Mateus Rocha
A iniciativa trouxe para o sertão de Goiás o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. O resultado: Lelé se mudou para a cidade onde nasceu e fundou uma usina de pré-fabricados em argamassa armada, a Fábrica de Escolas e Equipamentos Urbanos (Faec) do Rio de Janeiro. A produção era destinada a obras em comunidades carentes, desde escolas até postos de saúde e saneamento básico.
Menos de cinco anos depois, o então vice-governador do Rio, Darcy Ribeiro, convidou Lelé para construir perto de 5 mil obras destinadas ao atendimento integral às crianças de periferia. Eram o Ciacs, os Centros Integrados de Atenção à Criança, que deveriam ser implementados em todo território nacional.
Lelé gostava de contar que teve de fazer um exame de próstata, no começo dos anos 2000. Chegou à médica e foi convidado a se instalar numa maca tecnológica. Acomodado, o paciente não precisava mudar de lugar. A maca se deslocava para que a médica pudesse fazer o exame sem constrangimentos. Ela comentou com o arquiteto a funcionalidade do equipamento, ao que ele acrescentou: ;Fui eu quem projetou;. Os dois gargalharam.
A dedicação à arquitetura de hospitais também começou em Brasília, não no Sarah, como se poderia imaginar, mas no Hospital Regional de Taguatinga, construído em 1968. Mas, a essa altura, Lelé já tinha contato com Aloysio Campos da Paz e sua febril dedicação à Rede Sarah. Febre dupla, como conta Lelé: ;Nos dias em que fiquei internado, ficávamos até altas horas da madrugada revendo o centro de ortopedia do hospital que na época estava vendo instalado. A partir daí, fiz muitos desenhos de fraturas, de próteses, de tração, essas coisas, todas a pedido do Aloysio;, disse em entrevista a Ana Gabriella Lima Guimarães, em 2003, em Salvador.
No fim dos anos 1990, Campos da Paz deu um depoimento incisivo sobre a contribuição do arquiteto para a inequívoca eficiência da Rede Sarah: ;Os hospitais de Lelé, ao contrário de espaços constrangedores de sofrimento, tornaram-se locais amenos, generosos, ricos em volumes e cores: a própria expressão e sentido da palavra reabilitação. Quando um velho titular de ortopedia e reabilitação da mais antiga e tradicional universidade inglesa visitou os belos espaços horizontais do Sarah Salvador, virou-se para mim e murmurou com os olhos marejados: sempre sonhamos com isso! Hoje, você me trouxe ao próximo século;.
Lelé teve três filhas, Luciana, Adriana e Sônia, nascidas em Brasília, três netos e a ex-mulher, Alda. Luciana nasceu com paralisia cerebral, o que motivou o arquiteto a tomar o rumo da reabilitação dos movimentos. Adriana é arquiteta; Sônia, jornalista. O corpo de Lelé não será sepultado no Rio de Janeiro, onde nasceu, ou em Salvador, onde morou nas últimas duas décadas, mas em Brasília, onde brotou o arquiteto tecnológico, socialmente responsável e, sobretudo, de uma inesquecível sensibilidade para com o bem-estar humano, sem abdicar do encanto e da beleza.
"Por incrível que pareça, acho que meu maior sucesso profissional foi nessa cidadezinha de Goiás (Abadiânia), porque houve um envolvimento total das pessoas;
Lelé
"Os hospitais de Lelé, ao contrário de espaços constrangedores de sofrimento, tornaram-se locais amenos, generosos, ricos em volumes e cores: a própria expressão e sentido da palavra reabilitação"
Aloysio Campos da Paz, idealizador da Rede Sarah
FÁBRICA LELÉ
- Hospitais
- Fábricas (não simplesmente o edifício, mas conduziu a produção de pré-fabricados, de argamassa, aço e estrutura metálica)
- Habitações coletivas
- Casas
- Edifícios de escritórios
- Apartamentos
- Igrejas
- Clubes
- Escolas
- Creches
- Indústrias
- Auditórios
- Estações de transporte urbano
- Passarelas
- Edifícios administrativos
- Pontes
- Abrigos de ônibus
- Sistemas de contenção e drenagem
- Cama-maca e outros equipamentos hospitalares
- Bancos de praça
- Restauração de centro histórico (Pelourinho)
- Obras do arquiteto
O Beijódromo da UnB: o sonho de Darcy Ribeiro concretizado pelo amigo Lelé - Blocos da 109 Sul ; (Com Aldary Toledo e Luigi Pratesi)
1960
- Residência da Embaixada da África do Sul ; Brasília
1961
- Casas da 713 Sul
- Ceplan/UnB ; (Desenvolvimento de projeto de Oscar Niemeyer)
1962
- Colina Velha ; UnB
- Protótipo habitacional ; UnB ; (Desenvolvimento de projeto de Oscar Niemeyer)
1963/1971
- Minhocão ; (Desenvolvimento de projeto de Oscar Niemeyer)
1962
- Pavilhão de Serviços Gerais da UnB ; (execução de projeto de Oscar Niemeyer)
1963
- Instituto de Teologia Católica (atual Secretaria de Cultura do DF, 607 Norte) ; (Desenvolvimento de projeto de Oscar Niemeyer)
1965
- Residência para ministro de Estado ; Brasília
- Sede da Disbrave ; Brasília
1967/1968
- Quartel General do Exército (Desenvolvimento de projeto de Oscar Niemeyer)
1968
- Hospital Regional de Taguatinga
1969
- Residência Aloysio Campos da Paz, em Brasília
1971
- Oficinas gráfica do Correio Braziliense ; Brasília
1972
- Sede da Planalto de Automóveis/Ford ; Brasília
1973
- Residência Rogério Ulisses ; Brasília
- Secretarias do Centro Administrativo da Bahia
- Sede da Codipe/Mercedes-Benz ; Brasília
1974
- Residência José da Silva Netto ; Brasília
- Sede do DNPVN (Extinto Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis) ; Brasília
- Academia de Tênis ; Brasília
- Centro de Exposições de Salvador
- Edifício da Codipe ; Brasília
1975
- Residência Nivaldo Borges ; Brasília
- Igreja do Centro Administrativo de Salvador ;
1976
- Hospital do Aparelho Locomotor de Brasília (Rede Sarah) ; (A primeira fase da construção é projeto de Glauco Campello, iniciada em 1960)
1977
- Edifícios Camargo Corrêa e Morro Vermelho ; Brasília
- Edifício Dataprev ; Brasília
- Residência Mário Kertész ; Salvador
- Clínica Daher ; Brasília
- Centro de Aperfeiçoamento do Dasp ; Brasília
1978
- Centro de Pesquisas Agropecuárias do Cerrado ; Brasília
- Abrigos e terminais de ônibus ; Salvador
1978/1981
- Fábrica da Renurb (Companhia de Renovação Urbana) ; Salvador ; 1978/1981
1979
- Postos de polícia ; Salvador
- Estação de transbordo da Lapa ; Salvador ; 1979
- Central de Delegacias ; Salvador
- Igreja dos Alagados ; Salvador
1981
- Sede da Eletrobras ; Rio de Janeiro
1982/1984
- Fábrica de Abadiânia ; Goiás ; (pontilhões, escolas rurais etc.)
1984
- Sede da Associação Portuguesa ; Brasília
1984/1986
- Fábrica de escolas do Rio de Janeiro ; (escolas, creches, casas comunitárias, postos de saúde, abrigos, saneamento básico etc.)
1986
- Sede da Prefeitura de Salvador
1987
- Laboratório de Termobiologia/UnB, com a colaboração de Luiz Fernando Gouveia Laboriau
1987/1988
- Passarelas para pedestres ; Salvador
1988
- Hospital do Aparelho Locomotor de Curitiba (Rede Sarah)
- Estação de transbordo do Iguatemi ; Salvador
- Hospital do Aparelho Locomotor de São Luís (Rede Sarah)
- Passarelas para pedestres ; Florianópolis
1989
- Passarelas para pedestres ; Belo Horizonte
- Hospital do Aparelho Locomotor de Salvador (Rede Sarah)
1984/1989
- Fábrica de equipamentos urbanos do Rio de Janeiro ; (mobiliário urbano, abrigos, escolas etc.)
1990
- Fábrica para produção de Centros Integrados de Apoio à Criança (Ciacs) em todo o país
1985 a 1990
- Fábrica de equipamentos urbanos de Brasília ; (escolas, abrigos, passarelas etc.)
1991
- Hospital do Aparelho Locomotor de Fortaleza (Rede Sarah)
1992
- Passarelas para pedestres ; Rio de Janeiro
1993
- Hospital do Aparelho Locomotor de Belo Horizonte (Rede Sarah)
1994
- Centro Comunitário de São Luís da APS
- Residência João Santana
- Centro de Apoio ao Grande Incapacitado Físico de Brasília (Rede Sarah)
1995
- Hospital do Aparelho Locomotor de Recife (Rede Sarah)
- Almoxarifado de Brasília da APS
- Sede do Tribunal de Contas da União no Estado da Bahia
1996
- Sede do TCU do Rio Grande do Norte
- Hospital do Aparelho Locomotor de Natal (Rede Sarah)
- Posto Fiscal Rodoviário do Estado do Maranhão
1997
- Sede do TCU de Sergipe
- Sede do TCU de Minas Gerais
- Tribunal Regional Eleitoral da Bahia
- Sede do TCU de Alagoas
- Sede do TCU de Mato Grosso
- Sede do TCU do Piauí
- Escola de Aperfeiçoamento do TCU em Brasília
- Prefeituras em municípios do Maranhão e Amapá
1998
- Sede do TCU do Espírito Santo
2000
- Unidade Avançada do Aparelho Locomotor de Macapá (Rede Sarah)
- Centro de Reabilitação do Rio de Janeiro (Rede Sarah)
- Hospital do Aparelho Locomotor do Rio de Janeiro (Rede Sarah)
2001
- Projeto Vale dos Rios ; Ribeirão Preto
1986/2002
- Fábrica de equipamentos comunitários de Salvador ; (escolas, creches, prédios públicos, passarelas etc.)
2002
- Fábrica de Equipamentos Comunitários de Ribeirão Preto
2008
- Residência de Roberto Pinho ; Brasília
2010
- Beijódromo ; Brasília