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Os primeiros hortelões

Antes da revolução agrícola, povos pré-históricos já conheciam as propriedades nutricionais e até medicinais de plantas. A descoberta contesta a tese de que a dieta dos ancestrais era baseada em alimentos proteicos

Paloma Oliveto
postado em 17/07/2014 14:00


Escavação de 90 tumbas no cemitério pré-histórico de Al Khiday, no Sudão Central: esqueletos tinham 9 mil anos
Escavação de 90 tumbas no cemitério pré-histórico de Al Khiday, no Sudão Central: esqueletos tinham 9 mil anos

A imagem clássica que se tem dos ancestrais pré-históricos é a de mulheres e homens cabeludos, usando roupas de pele e armados com um porrete na mão. Carnívoros, perseguiam suas presas em bando e, nos acampamentos nômades, se banqueteavam com a caça. Então, um dia se tornaram agricultores, fixaram-se à terra e passaram a incluir no cardápio plantas e cereais.

A história, porém, não foi bem assim. Apesar de fortes evidências de que as comunidades pré-agrícolas tinham uma dieta essencialmente proteica, mesmo antes da revolução do campo, elas já tinham conhecimento das propriedades nutricionais e até medicinais das plantas. É o que indica uma pesquisa liderada pela Universidade Autônoma de Barcelona e pela Universidade de York, e publicada na revista Plos One.

Diferentemente do que acontece com ossos de animais, um material bastante farto nas escavações arqueológicas, é raro encontrar evidências do consumo de plantas e ervas pré-históricas. Por isso, os pesquisadores usaram uma abordagem diferente. Em vez de buscar restos de vegetais em fogueiras e potes cerâmicos, foram atrás dos indícios da ingestão desses alimentos em placas depositadas nos dentes de indivíduos pré-históricos.

Sinônimo de uma parca higiene bucal, o cálculo dental é uma ferramenta de trabalho valorosa para paleontólogos. Ele se forma quando a placa se acumula e mineraliza nos dentes. ;Esse cálculo pode ser encontrado por toda a dentição nas áreas supragengival e subgengival e está relacionado a altos níveis de consumo de carboidratos obtidos a partir de açúcares, que, no fim, se converteram em glicose;, explica a arqueóloga Donatella Usai, do Instituto Italiano pela África e o Oriente, que liderou as escavações realizadas no Sudão. ;Por causa de sua localização dentro da boca, o cálculo dental oferece uma ligação direta com o material que foi inalado ou ingerido, e seu valor como fonte de informação biográfica é cada vez mais evidente;, afirma.

Anti-inflamatórios
O grupo internacional de pesquisadores trabalhou com 14 restos mortais escavados em 2005 em um cemitério pré-histórico de Al Khiday, no Sudão Central, às margens do Nilo. Os esqueletos são de períodos distintos e todos antecedem o Neolítico na região (época em que a agricultura começou a se desenvolver) e cobrem, no total, 7 mil anos de história. Os estudos de datação e as análises da placa dental indicaram que o consumo de plantas já era algo comum entre os povos daquela região, mesmo quando eles eram nômades pescadores-caçadores-coletores.

Depois de raspar os dentes dos fósseis, os cientistas extraíram compostos químicos desses microfósseis e encontraram um material condizente com restos de Cyperus rotundus, erva daninha que, no Brasil, é conhecida como junça e tiririca-do-brejo, usada na medicina popular para tratar infecções, inflamações e males gástricos. A concentração da planta nos fósseis sugere que ela foi um item extremamente importante na dieta pré-histórica.

;Hoje, essa planta é considerada uma ;praga; em regiões tropicais e subtropicais e tem sido chamada de semente mais cara do mundo por causa dos altos custos de sua erradicação das áreas agrícolas;, disse, em um comunicado, a paleontóloga Karen Hardy, pesquisadora do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados. ;Ao extrair material das amostras dos antigos cálculos dentais, descobrimos que, no passado, em vez de ser uma erva daninha, ela tinha um enorme valor como alimento e, possivelmente, fonte medicinal;, disse. No antigo Egito, a Cyperus rotundus era utilizada para fabricação de remédios e perfumes.

Contra as cáries
Segundo Stephen Buckley, pesquisador da Universidade de York que conduziu as análises químicas, a junça teve lugar de destaque para os povos ancestrais durante muito tempo. ;Há evidência de seu uso em amostras de todos os períodos de tempo que investigamos. Ao menos em Al Khiday, ela foi extremamente importante, mesmo depois que a agricultura já havia se desenvolvido;, afirma. Buckley conta, ainda, que a Cyperus rotundus pode ter agido como um poderoso artifício anticáries. ;Encontramos níveis muito baixos de cárie nas amostras. Provavelmente, a planta tem potencial de combater a Streptococcus mutans, bactéria que contribuiu para destruir os dentes.;

Além da erva daninha, os pesquisadores encontraram traços de muitas outras plantas, consumidas cruas ou cozidas. ;Estudos baseados em compostos químicos e microfósseis extraídos do cálculo dental vão ajudar a contrabalancear o foco dominante na carne e na proteína que tem sido, até agora, uma característica da interpretação da dieta pré-agrícola. O acesso à ingestão de plantas, que é fornecido pela análise do cálculo dental, vai aumentar, senão revolucionar, a percepção do conhecimento ecológico e do uso de plantas entre as primeiras populações pré-históricas;, aposta Karen Hardy.

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