Trabalho e Formacao

Sucessão de erros deixa o Fies na berlinda

Falta de controle e expansão desenfreada do programa causaram um enorme problema para instituições de ensino e alunos. Especialistas concordam que a mudança é necessária, mas a maneira como está sendo feita é mais um equívoco

postado em 25/03/2015 12:05
Isabella Santiago não sabe de poderá continuar o curso de fisioterapia porque o valor liberado pelo sistema é menor que o da mensalidadeDepois de tentar diariamente por duas últimas semanas, Isabella Santiago, 17 anos, conseguiu se inscrever pelo site no Programa de Financiamento Estudantil (Fies). Na segunda etapa, em que o candidato tem de levar a documentação à instituição onde deseja estudar, veio a surpresa. O valor liberado pelo sistema era inferior ao das mensalidades, de forma que ela terá de pagar R$ 2.120 neste semestre para compensar a diferença. Ela refez a inscrição e não sabe se conseguirá o benefício. A estudante de fisioterapia pagou a matrícula e a mensalidade de fevereiro e, se não conseguir o Fies, não sabe se poderá continuar o curso que custa R$ 2.738,70 mensais. ;Estou chateada e com medo porque é meu sonho e achei que ia dar certo;, lamenta.

O curso de Isabela teve um reajuste de 6,97% de 2014 para 2015. O valor está acima dos 6,4% do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), estipulado como limite pelo Ministério da Educação para as instituições receberem os repasses. A medida é uma das diversas adotadas desde dezembro que restringem o maior programa de financiamento estudantil do país. Desde o último ano do governo Lula, quando passou a funcionar nos moldes atuais, a expansão foi expressiva ; o número de beneficiados cresceu de 76,2 mil em 2010 para 1,9 milhão atualmente.

O orçamento acompanhou o ritmo. No primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, os gastos com o Fies passaram de $ 1,84 bilhão em 2011 para R$ 13,75 bilhões em 2014. Dois meses após o segundo turno das últimas eleições, o Ministério da Educação (MEC) divulgou duas portarias limitando a iniciativa. A pasta reconheceu o peso das restrições orçamentárias nas medidas. Neste ano, a redução do fluxo de pagamentos às instituições resultará em uma economia de R$ 4,2 bilhões para o ministério.

[SAIBAMAIS]Na avaliação de especialistas ouvidos pelo Correio, a falta de controle do governo nos últimos anos levou a um cenário insustentável para a continuação do programa nos moldes estabelecidos em 2010. As recentes alterações são necessárias para aprimorar o modelo financeiramente e consertar as desvirtuações cometidas por instituições e alunos. O maior problema, no entanto, é a forma como a reestruturação está sendo feita. Para especialistas, a falta de transparência e de diálogo é mais um tropeço do Executivo.

Na avaliação do próprio governo, realmente houve erros na condução do Fies e um deles é que, até então, o programa era centralizado nas instituições de ensino superior. A concessão dos financiamentos era feita sob demanda dos estudantes em cada instituição e não havia limites claros de vagas. A partir do segundo semestre deste ano, será adotado um sistema similar ao do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), em que o governo terá maior controle sobre o processo. O ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, afirmou ontem que o preço das mensalidades era ajustado com ;total liberdade;, o que possibilitou algumas práticas abusivas.

"Bomba-relógio"
Para Daniel Cara, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o governo falhou no controle dos preços das mensalidades e na avaliação da qualidade dos cursos. ;Criou-se uma bomba-relógio em termos de empréstimo;, afirma. Para ele, a atual avaliação pelas quais os cursos passam ; onde o CPC é o principal indicador ; é insuficiente para garantir um ensino superior de qualidade. O especialista destaca ainda que a falta de diálogo nas mudanças é recorrente no MEC, ;que tem sido marcado por gestões muito frágeis numa visão de negociação;, principalmente durante a de Mercadante, período de maior expansão do Fies.

Priscila Simões, diretora executiva da Expertise Educação, ressalta que houve um movimento muito forte por parte do governo para incentivar a adesão das instituições ao programa. Desde 2010, foram flexibilizadas as regras em termos de fiador, redução da taxa de juros e aumento do prazo para o aluno pagar o empréstimo. Ela acredita que poderiam ter sido adotadas medidas alternativas às atuais mudanças para evitar um descontrole, como um escalonamento da taxa de juros de acordo com a renda familiar. Para a especialista, o setor privado não pode atuar sozinho nos empréstimos. ;É muito difícil promover um processo de massificação do ensino superior sem ter financiamento governamental;, afirma.

De acordo com Gustavo Fagundes, do Instituto Latino Americano de Planejamento Educacional (Ilape), ampliar progressivamente o programa sem medir o reflexo financeiro a cada passo foi um dos maiores erros, e, agora, quem está sendo prejudicado com as mudanças repentinas é o aluno. ;Vendeu-se para a população uma proposta de garantia de acesso pleno à graduação e o Estado não tinha condição de bancar essa promessa;, afirma.

Avaliação
O Conceito Preliminar de Curso (CPC) é o principal indicador de qualidade dos cursos de graduação no Brasil. Ele varia de 1 a 5. Notas iguais ou superiores a 3 indicam qualidade satisfatória. Os de nível 1 e 2 recebem visitas de avaliadores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O indicador inclui desempenho de estudantes, infraestrutura das instituições, recursos didático-pedagógicos e formação do corpo docente. O CPC é calculado desde 2007 no ano seguinte ao da realização do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Os alunos são avaliados pelo Enade a cada três anos.

Vendeu-se para a população uma proposta de garantia de acesso pleno à graduação e o Estado não tinha condição de bancar essa promessa;
Gustavo Fagundes,
assessor jurídico do Ilape

Falhas
Os principais equívocos no Fies, segundo especialistas:
Transparência

As alterações foram feitas sem um diálogo amplo com as faculdades e alunos. Algumas das medidas, como priorizar áreas estratégias para o país, não constam nas portarias publicadas em dezembro nem foram anunciadas formalmente.

Mensalidades
O MEC estabeleceu o limite de 6,4% de reajuste de mensalidades para as instituições continuarem no programa, de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a fim de conter reajustes abusivos.
O acompanhamento dos valores deveria ter sido feito desde o início do programa.

Enem
A recente exigência de 450 pontos como nota mínima no Enem limita o acesso ao ensino superior principalmente para alunos com condições financeiras precárias, sem chance de pagar uma graduação. A mudança poderia ter sido feita de forma escalonada e com avaliação frequente dos impactos.

Renda

Em alguns casos, pessoas com condições financeiras para pagar os cursos recorrem ao programa que tem uma taxa de juros de 3,4%, abaixo do praticada pelo mercado. Famílias com renda entre 16 e 20 salários mínimos, por exemplo, podem obter financiamento de até 50% da mensalidade.

Qualidade
Não foi feito um controle efetivo da qualidade do ensino nas instituições vinculadas ao programa. A antiga exigência de nota 3 no Conceito Preliminar de Curso (CPC) e as outras formas de avaliação não são consideradas efetivas por especialistas.

Memória
Transformação em décadas

O Programa de Financiamento Estudantil (Fies) foi criado em maio de 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por uma medida medida provisória que substituiu o Programa de Crédito Educativo, instituído em 1975, durante o regime militar. O precursor do Fies beneficiou mais de 870 mil estudantes e funcionou na primeira fase com recursos da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e de bancos comerciais.


Em 2001, a medida provisória foi convertida na Lei n; 10.260, em que foi definida a exigência de nota mínima 3 no Conceito Preliminar de Curso (CPC) para integrar o sistema de financiamento. Em 2010, último ano do governo Lula, o programa passou pela maior restruturação, onde foram definidos os marcos regulatórios vigentes até hoje.


Neste momento, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) assumiu a gestão do programa, antes de responsabilidade do Ministério da Educação e da Caixa Econômica. Também foi introduzido o Sistema Informatizado do Fies (SisFies) para registrar os novos contratos. A Caixa e o Banco do Brasil foram contratados para prestarem serviços de agentes financeiros.

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