Nelson Rodrigues abominava viagens e, para ele, o bairro suburbano do Méier, no Rio de Janeiro, já era exterior: ;Nunca viajo, pois a partir do Méier sinto saudades do Brasil;. Por isso, foi uma surpresa quando aceitou vir a Brasília de carro assistir à inauguração da cidade, em 21 de abril de 1960. Para os detratores, instalados na Cidade Maravilhosa, era uma viagem ao fim do mundo, pois Brasília ainda tinha o aspecto de um imenso canteiro de obras em estado de esqueleto, varrido por redemoinhos de poeira vermelha. Comsua intuição fulminante e seu instinto de profeta do óbvio, Nelson escreveu uma crônica memorável, em defesa da nova capital, significativamente intitulada A derrota dos cretinos; finalmente publicada em livro. ;Essa sim, é a primeiramissa do Brasil!”, sentenciou. Na passagem dos 100 anos do jornalista, cronista e dramaturgo, retomamos a conexão pouco conhecida e preciosa de Nelson com Brasília.
Ele só esteve na capital modernista uma única vez. Apesar disso, ficou profundamente tocado pela ideia da cidade épica, erguida no meio dos sertões, para libertar o Brasil da condição de país vira-lata, em face de si próprio e do mundo. Não chegou a fazer campanha aberta pela cidade, mas desferiu petardos brilhantes de franco-atirador em crônicas e em obras de ficção em favor da capital. Veio em um comboio com os militares do CPOR (Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva) acompanhado pelo filho mais velho, Jofre: ;Que experiência densa, apaixonante, viajar, não num jato, mas em três briosas carroças encantadas. Conhecemos então essa coisa comovente que é a estrada Belo Horizonte-Brasília que não para, não cansa, que assombra com seu asfalto intermitável e épico;.
Porque o arredio a viagens Nelson Rodrigues aceitou vir a Brasília?Maria Lúcia Rodrigues, uma das filhas do escritor,professora da Universidade Federal de Mato Grosso , se lembrade fotos em que o presidente Juscelino Kubitschek era uma presença constante na casa de Mário Rodrigues, o pai de Nelson: ;Ele aparece brindando no aniversário de minha avó, com Silvio Caldas. Foi essa amizade com Juscelino que fez o meu pai vir à nova capital. Brasília seria o redescobrimento do Brasil. Acho que Juscelino o convenceu a conhecer Brasília;.
Futuro
O poeta Carlos Drummond de Andrade reclamou da poeira vermelha da nova capital em uma crônica. A réplica de Nelson veio de maneira delirante e desconcertante: ;Para mim, uma das coisas fundamentais de Brasília e que, no futuro, devem ser provocadas, artificialmente, é o pó. (;) Outro que eu gostaria de ver aqui dando rijas e sadias marteladas era o próprio Carlos Drummond;.
Maria Lúcia considera esseumdos trechos mais importante da crônica A derrota dos cretinos: ;É a primeira vez queumintelectual do Sudeste olha para a poeira vermelha do interior do país e diz que ela é linda. Isso não era nada comum naquele tempo;.
Na verdade, o elogio da poeira era um brinde à audácia modernista de construir uma cidade de desenho arrojado em cima do deserto.Nelson queria que o Brasil saísse da condição de país de segunda classe.Ele tinha muita simpatia pela ideia de modernidade. Brasília era uma materialização de suas profecias sobre o destaque que Brasil teria nomundo: ;Era a manifestação de um homem acostumado ao asfalto o tempo todo, falando sobre a poeira. Essa marcha para o Oeste interiorizou o desenvolvimento. Ele passa a impressão de que Brasília é umfeito heroico importantíssimo para o país;.
;Esse horror granfino ao pó tem, como é óbvio, muito de simbólico. O que se esconde, ou melhor, o que não se esconde por trás dessa alergia, é o sonho de uma confortabilíssima honestidade em Copacabana, sem risco, sem atropelo e comum imaculado asseio físico;
;Eu sei que, segundo os inimigos de Brasília, a beleza passou a ser uma indignidade. Diante do belo, do simplesmente belo, rosnam:;Fascismo! Fascismo! E, no entanto, o paralelepípedo mais analfabeto teria vontade de chorar lágrimas de esguicho ante a beleza de Brasília;
;Ir a Brasília é voltar mais brasileiro. Se o Corção estivesse lá à meia-noite, de vinte e um, na Praça dos Três Poderes, havia de arrancar do fundo de sua acidez de magro e de lívido a confissão total: ;Esta, sim, é a Primeira Missa do Brasil; ;
Bastou uma viagem no dia da inauguração de Brasília para a cidade arrebatar o dramaturgo, cujo centenário de nascimento é comemorado na próxima quinta-feira
Frases
;Brasília é um outro país, quase outro idioma; ;Em Brasília ninguém é inocente; todos são culpados ou cúmplices;
" Só os imbecis têm medo do rídiculo"
Nelson Rodrigues
O senhor se importa de conceder uma entrevista imaginária?
Não, pelo contrário. Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que pensa, o que sabe, o que sente, emuma entrevista inventada. E, principalmente, depois de morto.
Qual o impacto que teve o fato de ter ingressado em jornal aos 13 anos de idade para trabalhar na editoria de Polícia?
Três anos em uma editoria de polícia de um jornal pode formar um Balzac. A verdade é que do homicídio ao furto de galinha;a crônica policial tem suas raízes nas grandes paixões humanas, nos problemas eternos do homem. Quando o repórter apura a ;Tragédia em Copacabana;; está diante de uma Anna Karenina. E, então, pergunto: por que negar o valor dramático de um simples atropelamento?
O fato de a sua família ter empobrecido o afetou na infância?
Eu levava banana de lanche e ficava muito orgulhoso. Até que um garoto puxou um sanduíche de ovo que humilhou e liquidou a minha banana. Aliás, essa cena iria se repetir por todo o meu curso, porque meu pai era pobre. Pão e manteiga, isso pramim, era coisa oriental das Mil e uma noites.
Quando descobriu que tinha talento para escrever?
Na Escola Prudente de Morais, na Tijuca, quando eu tinha 7 anos, escrevi o primeiro episódio de Avida como ela é; Houve um concurso de composição na aula. Ganhamos eu e um outro garoto. Ele escreveu sobre um rajá que passeava montado em um elefante e eu escrevi a história de um adultério que terminou com o marido esfaqueando a adúltera. Começava assim: ;A madrugada raiava sanguínea e fresca; (risos).
Foi meu primeiro plágio, é umverso do poeta maranhense Raimundo Correia (risos). A coluna A vida como ela é; cumpriu o seu papel?
A vida como ela é; se tornou justamente útil pela sua tristeza ininterrupta e vital. Uma pessoa que só tenha do mundo uma visão unilateral e rósea, e que ignore a face negra da vida, é uma pessoa mutilada. Precisamos ter continuamente a consciência, o sentimento, a constatação dessa dor. Sei que nenhum de nós gosta de se aborrecer.Mais importante, porém, que o nosso frívolo conforto, que onosso alvaregoísmo;é o de verde participar do sofrimentos dos outros. Há uma leviandade atroz na alegria!
Seu ritmo de produção é intenso, além da seção diária de A vida como ela é;, o senhor escreve peças e colunas esportivas para Última Hora, Jornal dos Sports e Manchete Esportiva;
Trabalho mais que um remador de Ben-Hur (clássico com CharltonHeston).
Alguns críticos atacam suas peças como obras pervertidas, de baixo nível. Osenhor concorda?
Minhas peças são obras morais. Deveriam ser encenadas na escola primária e nos seminários.
Mas e as cenas pornográficas que a flor ama cada instante?
Não sou pornográfico. Pelo contrário, me chame de moralista. O único lugar onde o homem sofre e paga pelos pecados é em minhas peças. Numa época em que a maioria se comporta sexualmente como vira-latas, eu transformo um simples beijo numa abjeção eterna. Se há um brasileiro maníaco pela pureza, esse brasileiro sou eu.
Como foi a história de um jovem que disse ao senhor: ;Seu Nelson, não deixo minha noiva ler a sua seção, porque suas personagens femininas dão mau exemplo;;
Discordo desse ideal de noiva cega, surda e muda diante da vida. Uma moça só deve ser esposa quando está em condições de resistir aos maus exemplos. Considero monstruosa a virtude que se baseia, pura e simplesmente, na ignorância
do mal.
Por que a sua implicância com os jovens?
Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. A mais tola das virtudes é a idade.Que significa ter 15, 17, 18 ou 20 anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade. Mas, aos 18 anos, o sujeito não sabe nem como dar bom dia para uma mulher.
Mas o senhor também é contra a nudez. A nudez não é bela?
O biquíni é a forma mais desesperada da nudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plástica nada misteriosa. E aí começa a exposição da nudez sem amor: a inconsolável solidão da mulher.
Uma educação sexual não equilibraria a situação?
A educação sexual é uma das mais deslavadas imposturas de nosso tempo. Sexo, e apenas sexo, é coisa para bezerros, bodes, preás e jumentos. No homem, sexo é amor. Portanto, só se entenderia, não uma ;educação sexual;, mas uma educação para o amor. A educação sexual só devia ser dada por um veterinário.
Que lugar o senhor atribui ao humor na vida?
A ausência de humor é uma forma de burrice.
Qual o impacto emsua vida da morte do seu irmão Roberto, assassinado em sua frente, na redação de jornal do seu pai?
A morte do meu irmão Roberto deu me um profundo horror ao assassinato. Este horror é tanto que entre ser vítima ou assassino, prefiro ser vítima. A assassina foi absolvida e as pessoas aplaudiram como se estivessem em um programa de auditório. A partir deste instante, formei a convicção de que a opinião pública é uma débil mental. E imaginei a fuga impossível de ir para uma ilha deserta onde se só ouvisse o vento e o grito das gaivotas.
Por que o senhor nunca viajou para a Europa?
A Europa é uma burrice aparelhada de museus. Para mim, o bairro de Bangu já é exterior.
Quem são os idiotas da objetividade no jornalismo que o senhor tanto fala?
O idiota da objetividade é o grande jornalista que tem grande fama. Todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetivida de um fracasso.
Por que o senhor exaltou tanto a necessidade de o brasileiro não ser humilde?
O brasileiro (da Copa do Mundo) de 1950 era um humilde de babar na gravata. Quando passava a carrocinha de cachorro cada um de nós tinha medo de ser laçado também.
O brasileiro tem vocação para vira-latas?
O brasileiro vai conquistar a vida. É um peixe cego, que tem luz própria, mas anda babando na gravata.
O senhor acha que o idiota é um tipo em ascensão?
Outrora os melhores pensavam pelos idiotas, hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica;ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
O senhor é de direita?
Eu me recuso a ser um homem de esquerda, de direita ou de centro. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão.
Mas o senhor apoiou o regime militar instaurado a partir de 1964, um estado de exceção que censurou e torturou; Claro que a tortura é a coisa mais hedionda da terra. O meu filho Nelson Rodrigues Filho foi torturado. Tive relações pessoais com o presidente Médici. Perguntei ao presidente se permitiria a meu filho, que vivia na clandestinidade, deixar o país. Mas o Nelsinho disse que só aceitaria o benefício se atingisse os seus companheiros. Devoto à direita o mesmo horror que tenho pela esquerda.
O senhor se autointitula um reacionário. O que é, emseu ponto de vista, ser reacionário?
É reagir a tudo que não presta.
Por falar no que não presta... E a corrupção? Como acabar com ela?
A consciência social do brasileiro é a radiopatrulha.
Onde busca inspiração para criar os seus personagens?
Não exagero quando digo que tenho 10 mil peças na cabeça. É um mar de histórias. Encontro meus personagens na vida real. Eu os farejo, os apalpo. Ainda não perdi a esperança de ver um personagem pagar-me um cafezinho em pé, defronte da ABI.
Um artigo de Oswald de Andrade publicado em 1952 joga pesado contra o senhor, chega a chamá-lo de ;o analfabeto coroado de louros;, de serum;taradão ilustre, mas de poucas letras;...
(risos) Eu vou a São Paulo dar um tapa nas ancas do Oswald de Andrade. Ele é uma vaca premiada, de argolanofocinho.
Como o senhor mesmo se autoavalia?
Sou o maior dramaturgo do país, mas qualquer um tem, é claro, o direito de me considerar um imbecil.
Não tem medo de cair no ridículo por suas posições excêntricas?
Só os imbecis têm medo do ridículo. Ogrande homem está sempre só.
Por que parece tão difícil transformar as coisas no Brasil?
Sub desenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.
O bombardeio de estímulos enriquece a experiência humana? O mundo pós-moderno está nos desumanizando?
Nada mais estúpido e vazio do que a variedade. Às vezes, eu passo dias, semanas e meses sem avistar um ser humano.
Como encontrar o grande amor na vida?
Eu acho o sexo uma coisa tranquilamente maldita, a não ser quando se dá este acontecimento inacreditável do sujeito encontrar o amor. Mas um sujeito precisa de 15 encarnações para viverum momento de amor. Porque a mulher amada, nada a obriga a estar na cidade onde a gente mora, a cruzar o nosso caminho. De formaque encontrar a mulher amada é um cínico e deslavado milagre.
Por que fracassamos no amor?
Há milhares de lares onde marido e mulher, dormindo no mesmo leito, comendo na mesma mesa, vivem cada qual uma solidão de Robinson Crusoé sem radinho de pilha. Eu sempre digo que não é na recepção do Itamaraty que devemos ser perfeitos. Não. Devemos reservar o melhor de nós mesmos, de nossa delicadeza, de nossa cerimônia, de nosso charme, para a mais secreta intimidade de nosso lar. Émenos grave chamar de chato um embaixador, um ministro,do que o namorado, a noiva, a esposa, o marido. Se respeitássemos o nosso amor, não seríamos tão solitários e mal queridos.
Um gênio escritor de jornalSonia Rodrigues, filha de Nelson Rodrigues,lança na próxima quinta-feira,em Recife, Brasil em campo (Nova Fronteira), coletânea de 58 crônicas inéditas emais 12 já publicadas pelo jornalista e escritor pernambucano. Duas delas são sobre Brasília, uma é A derrota dos cretinos. Ele dizia que trabalhava mais do que remador do filme Ben-Hur. E, de fato, desde quando iniciou uma varredura por arquivos e jornais, Sonia recolheu 850 crônicas inéditas do pai. Tudo é bancado pelo Almanaque da Rede, plataforma de educação a distância criada pela filha do dramaturgo e cronista: ;Nelson gostava das coisas grandiosas e a favor do Brasil;, comenta Sonia. ;E identificava Brasília neste contexto;.
Na crônica O Brasil em marcha, o escritor fala sobre o criador de Brasília, Juscelino Kubitschek: ;Amigos, o que importa é o que Juscelino fez do homem brasileiro.Deu-lhe uma nova e violenta dimensão interior. Sacudiu, dentro de nós, insuspeitadas potencialidades. A partir de Juscelino, surge um novo brasileiro. Aí é que está o importante, o eterno na obra do ex-presidente. Ele potencializou o homemdo Brasil;.
Embora já tenham sido publicadas inúmeras antologias, o baú deNelson parece inesgotável. Sonia não tem um levantamento preciso da quantidade, mas detecta indícios de que existem milhares de crônicas inéditas: ;Porém, enquanto não existir a Fundação Nelson Rodrigues,com um grupo de pesquisa qualificada, boa parte da obra permanecerá dispersa;.
Senso cômico O gênio de Nelson borbulhou nas páginas da imprensa carioca durante várias décadas, na forma de confissões, crônicas de costumes, crônicas de futebol, que Nelson era um escritor de jornal de maneira plena: ;A redação era o seu laboratório; as manchetes, um estímulo para a sua imaginação. A obrigação de escrever todos os dias o cansava, mas também dava terreno para que ele não parasse;. Ele destilou o senso cômico em cima da legião de novas estudantes de jornalismo que começaram a invadir as redações a partir da década de 1970, com os espaços abertos à participação das mulheres no mercado de trabalho. Inventou a personagem da ;estagiária de calcanhar sujo;, sempre pronta a disparar perguntas disparatadas. Mas ele teria muitas lições, provocações e inspirações a lançar para as novas gerações: ;Estilo, senso crítico, lucidez e humor;, enumera Sonia: ;Espero que todos os jovens que atuam em comunicação leiam. Ainda mais agora, quando temos a edição digital de Nelson Rodrigues por ele mesmo.; Provocador, polêmico, inconformista, audacioso, contundente e inconveniente, Nelson era um franco atirador que, emdeterminado momento, foi execrado pelas esquerdas por causa do apoio ao regime militar: ;Os intelectuais me tratavam como uma úlcera;, dizia. Se fosse vivo, haveria espaço para uma individualidade tão forte na imprensa atual? ;Acho que não;, avalia Sonia. ;As pessoas estão muito certinhas, não tenho conhecimento de ninguém, no atual panorama brasileiro, que tenha a coragem de esticar a corda como ele. Porque, para esticar a corda, é preciso assumir o risco da completa solidão, o risco de perder apoio, amigos, empregos, amores, patrocínios, pares
Sobrenatural de chuteirasEm 1958, os soviéticos estavam eufóricos com as descobertas da informática e resolveram computar os dribles de Garrincha. Chegarama uma conclusão de que é um primor do óbvio ululante:o endiabrado ponta só driblava pela direita.Muitos brasileiros ganiramde medo e de humildade. Mas, na primeira arrancada, Garrincha deixou dois russos sentados e o tricolor Nelson Rodrigues escreveu: ;Só faltou Chopin como fundo musical para o baile do Mané;. O Brasil venceu por 2x 0.
Nelson gostava de repetir que qualquer pelada de ponta de esquina tem a complexidade de uma tragédia shak espereana. A princípio, parece apenas uma blague espirituosa. No entanto, levava a frase rigorosamente a sério. Para ele, o futebol era uma arena das paixões humanas e uma extensão do seu teatro. ;O videoteipe é burro, não tem imaginação;, dizia. Nelson era, antes de tudo, um dramaturgo. Inventou personagem para viver o drama do futebol: o Gravatinha (torcedor fanático do Fluminense, que desce com a voz fina de criança de tenda espírita), aGranfina com Narinas de Cadáver (que pergunta em pleno dia de Fla-Flu: ;Afinal, quem é a bola?;), e Sobrenatural de Almeida (a manifestação do imprevisível): ;Os idiotas da objetividade não vão além dos fatos concretos. E não percebem que o mistério pertence ao futebol. Não há clássico e não há pelada sem um mínimo de absurdo, sem um mínimo de fantástico;
Didi era ;o príncipe etíope de rancho;. Amarildo, ;o possesso dostoievskiano, a pender a sua baba elástica;. O ponta Paulinho;corria mais do que coelhinho de desenho animado;. Em 1958, em um lance de profeta do óbvio, ele previu que o Brasil ganharia a Copa do Mundo. Nelson dizia que o futebol brasileiro precisava de um Homero, um Camões ou um Shakespeare. Não carece, ele eternizou o futebol brasileiro. Nelson é o nosso Shakespeare de chuteiras. (SF)
Trechos
O Brasil em campo
"Amigos, aí que está:;o sujeito que quiser conhecer o Brasil terá de olhar o escrete. Não há nada mais Brasil do que o Pelé. (;)A ressurreição nacional data de 1958. Que era o brasileiro antes da Jules Rimet? Um humilhado, um ofendido. No seu amargo cotidiano, sofria desfeitas da mulher, da criada e, até, do caçula. Pois bem. A vitória de 58 mudou até as nossas relações domésticas. Obrasileiro já entra dando patadas. Agora é ele quem ofende, é ele quem humilha. E toda essa nova e triunfante disposição vital nós devemos ao escrete".
No Brasil, o futebol é que faz o papel da ficção
"E o patético é que, quinta-feira, o videoteipe de Brasil x Inglaterra nos dera uma deprimente visão do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas:;o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito:;a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo que o videoteipe é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético".
Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!
"Amigos, não acredito na ;imparcialidade;. O imparcial absoluto seriaumser tão extraordinário que teria de viver amarrado num pé de mesa, e bebendo água numa cuia de queijo Palmyra. Ou amarrado num pé de mesa ou fazendo exibições num picadeiro. Imaginem o "imparcial" equilibrando laranjas no focinho como uma foca amestrada, ou engolindo ou cuspindo labaredas. Por outro lado, mesmo que possível, a ;imparcialidade" seria indesejável. (;) Sem um mínimo de paixão não se consegue chupar nem um Chicabon. Temos de aquecer a nossa seriedade e o nosso riso com o bom, o tépido sentimento brasileiro"
Sem um mínimo de paixão não se consegue chupar nem um Chicabon