Eles ganham melhores salários em comparação com os funcionários do setor privado, têm a estabilidade no emprego garantida e todos os benefícios de se trabalhar para o Estado. Tornar-se servidor público é o sonho de muitos brasileiros, mas está mais distante daqueles que não tiveram acesso à educação de qualidade desde o início da formação. Estudos mostram que as chances de ser aprovado em seleções públicas são muito maiores para quem não estudou na rede pública de educação básica e veio de família com renda alta.
Para Tiago Moreira da Fonseca, 31 anos, a boa condição financeira da família fez toda diferença na aprovação em concursos públicos. A primeira veio quando ele tinha 25 anos, na seleção do Supremo Tribunal Federal (STF). Pouco depois passou em segundo lugar no certame da Câmara dos Deputados para o cargo de técnico legislativo e, há alguns meses, foi aprovado no último concurso promovido pela Casa, agora no cargo de analista. A posse deverá ocorrer em breve.
Formado em ciência da computação, Tiago decidiu deixar a iniciativa privada e perseguir a carreira no serviço público. ;Sempre estudei em escola particular. Meu pai e minha mãe são servidores públicos. Não somos ricos, mas tivemos acesso a tudo;, conta. ;Depois de formado, pude largar o emprego só para estudar para concurso, oportunidade que muita gente não tem;, completa. Durante toda a vida, ele sempre pôde se dedicar apenas aos estudos. O técnico legislativo atribui a isso o sucesso que teve nos certames.
Impacto
Estudo feito entre os 232,3 mil candidatos que participaram do concurso do Banco do Nordeste mostrou, por meio de análises estatísticas, que os participantes com boa situação financeira na família, jovens, universitários ou pós-graduados, que vivem em região metropolitana e cursaram a educação básica em escola privada, têm cerca de 41 vezes mais chances de passar em um concurso público do que quem não possuiu essas condições. Os pesquisadores responsáveis pelo estudo concluíram que isso contribui para manter um ciclo vicioso de concentração de renda.
Apesar de o estudo ter sido focado na Região Nordeste, o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Roberto Tatiwa Ferreira, um dos cinco pesquisadores que participaram do levantamento, acredita que, com o apoio de outras evidências, é possível mensurar o impacto da concentração de renda causado pelos concursos públicos também em outras regiões do país.
O sociólogo e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Antonio Flavio Testa acredita que, em Brasília, a competição também seja desigual para aqueles que vêm de famílias de baixa renda ; e a cultura de concursos públicos na cidade não ajuda. ;Muita gente vê o serviço público como forma de ascender profissionalmente, o que é verdade. Do ponto de vista da reforma do Estado, quem está no núcleo estratégico, está no topo da pirâmide e faz parte da elite mais privilegiada;, afirma. ;Passar em um concurso está ficando cada vez mais difícil. Quem não possui boa condição financeira, não tem como competir;, completa. Para ele, a concentração de renda é uma consequência disso, as melhores oportunidades vão continuar sendo vinculadas às elites. Testa não acredita, no entanto, que em termos quantitativos essa concentração causada pelos salários dos servidores públicos seja muito relevante.
A advogada Luciana Nobre, 28 anos, está no grupo dos que têm menos chance de aprovação. Aos 18 anos, começou a jornada em busca da tão sonhada vaga no funcionalismo público, mas sempre teve que conciliar os estudos com o trabalho. Desde então, participou de mais de 10 seleções. O pai, motorista, chegou a sustentá-la por um período para que se dedicasse exclusivamente aos concursos, mas Luciana não se sentiu confortável com a situação e o desempenho piorou. ;Eu já estava incomodada com o fato de não poder retribuir o que ele fazia para mim. Não conseguia mais estudar;, relata.
Daniel Morais, 20 anos, cursou a educação básica em escola pública e acha que teria melhores oportunidades de ser aprovado em concursos caso tivesse frequentado a rede privada de ensino. Greves e falta de professores prejudicaram o aprendizado do jovem. Por algum tempo, ele teve que conciliar o trabalho com o estudo para seleções públicas e também sentiu dificuldade. ;Ficou difícil, porque eu trabalhava no horário comercial, de manhã até a noite;, conta. Ele mora com os pais e dois irmãos em Ceilândia. A única renda da casa vem do trabalho do pai, que é policial militar, e sustenta o filho enquanto ele tenta a aprovação em um certame. Daniel estuda há dois anos e, nesse período, participou de cinco provas. A meta é ser aprovado em concurso de nível médio na área administrativa.
A solução sugerida por Roberto Tatiwa Ferreira para reduzir a concentração de renda não é surpresa para ninguém: promover o acesso à educação de qualidade, de forma a igualar as oportunidades. ;Se essa condição existir para todos, então as chances para ser aprovado em um concurso para universidade ou para um posto de trabalho se tornarão cada vez mais igualitárias;, atesta o pesquisador, que lembra a importância de se ter políticas voltadas para graduação e pós também. ;Essas políticas fizeram parte da agenda de todos os países que, hoje, são considerados desenvolvidos e dos que querem alcançá-los;, completa.
Desigualdade
De acordo com o professor do Departamento de Sociologia da UnB Marcelo Medeiros, especialista em desigualdades sociais, é normal que a renda tenha impacto no acesso à educação e, consequentemente, no desempenho em seleções. ;Pessoas que vêm de famílias mais ricas normalmente têm melhores oportunidades e tendem a reproduzir as riquezas para as novas gerações.;
Em nota técnica publicada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os pesquisadores Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa e Pedro Herculano de Souza analisaram a evolução do diferencial de salários médios entre os setores público e privado no país e viram em que medida esse diferencial contribui para a desigualdade de rendimentos do trabalho. Eles constataram que a concentração dos rendimentos do setor público é muito maior do que a do setor formal. Numa escala de 0 a 1, o nível de concentração de renda no setor público é de 0,73, enquanto no setor privado é de 0,46. ;O trabalhador do setor formal tem uma participação maior (nos rendimentos médios do trabalho), mas menos concentradora que a do servidor público;, resume Ana Luiza.
A pesquisadora ressalta que esses são resultados preliminares e o próximo passo será estudar mais detalhadamente os rendimentos nos diversos setores do serviço público.
"Se essa condição existir para todos (educação básica de qualidade), as chances para ser aprovado em um concurso se tornarão cada vez mais igualitárias;
Roberto Tatiwa Ferreira, professor da Universidade Federal do Ceará