O prazo para inscrições de novos contratos no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) se encerra hoje em meio a turbulências recorrentes no programa. Alterações realizadas desde dezembro provocaram críticas de instituições de ensino superior e de estudantes. Muitos se endividaram ou tiveram de abandonar os cursos. Na reta final de inscrições, outro problema se somou à lista de reclamações: a precariedade no atendimento ao público.
A falta de dados precisos levou atendentes da central telefônica a informar que as vagas de novos contratos estariam garantidas nos casos em que os alunos ainda não tiveram resposta do Fundo Nacional da Educação (FNDE), o que não é verdade. Segundo funcionários responsáveis pelo serviço, em vez das 70 horas previstas, o treinamento deles não chegou a cinco horas, limitadas à apresentação de slides em que não foram incluídas dúvidas recorrentes. O atendimento é feito por funcionários da Call Tecnologia, empresa contratada pelo Ministério da Educação (MEC) por meio de uma licitação, em maio de 2014, por R$ 110 milhões para prestar serviços por 12 meses. O contrato pode ser renovado por igual período, com limite de cinco anos.
O Correio teve acesso a gravações em que um funcionário da terceirzada admite negligência na formação dos trabalhadores. ;Funciona desse jeito, na precariedade;, afirma. Depois de cancelar um treinamento porque o retroprojetor não funcionava e não havia sala disponível, outro funcionário se desculpa. ;Não deveria ter sido assim (...) Vou encaminhar posteriormente para o pessoal do DH (departamento de desenvolvimento humano), que é quem cuida da obrigação dos treinamentos, se será possível marcar com todos que estão aqui um treinamento de fato;, afirma. A promessa, feita em março a recém-contratados, não foi cumprida.
Uma funcionária admitida há seis meses conta que não teve qualquer instrução durante as duas primeiras semanas. ;Ficava lendo o site. Era a base que eu tinha para atender. Tinham termos lá que eu nem sabia o que significavam. Não sabia o que era aditamento (renovação do Fies) nem DRM (Documento de Regularidade de Matrícula, um dos principais para realizar a inscrição);, conta. ;Tem gente que não sabia até quando iam as inscrições e dizia que era até julho;, conta outra funcionária, contratada há dois meses. Os atendentes assinaram um termo no qual concordam em serem responsabilizados por meio de descontos no salário por qualquer informação errada passada aos estudantes que acarretasse prejuízo.
Alguns pedidos estão há seis meses sem resposta, como o da estudante de Jornalismo Rebeca Revelym, 25 anos. Ela tenta renovar o financiamento desde outubro. ;Eu explico toda a minha história, passo mais de cinco minutos falando e o atendente não sabe nada. Parece que pegaram qualquer pessoa na rua;, reclama. Depois de mais de 10 ligações e três visitas presenciais, Rebeca recorreu à Defensoria Pública e aguarda resposta para tentar se manter na faculdade. Ela frequenta as aulas, mas não está matriculada. ;Fiz prova este mês porque insisti, mas os professores não podem corrigir. Não tenho nem nome na chamada;, lamenta.
Procurada pela reportagem, a Call Tecnologia declarou que ;por motivos de força contratual, não é permitido repassar esse tipo de informação a terceiros;. A empresa pertence ao grupo JC Gontijo e atua desde 2002. Já o FNDE informou que os atendentes são ;constantemente capacitados pelos servidores da área gestora do Fies, bem como pela equipe de coordenadores e supervisores da empresa interposta;, e que a formação é direcionada no modelo ilha de atendimento, com duração de uma semana a um mês. Há 660 funcionários no setor, e a média de atendimentos diários foi de 9.368 em abril.
Ainda de acordo com o FNDE, foram admitidos 249,9 mil novos beneficiários até a noite de sexta-feira. No ano passado, o número chegou a 731,7 mil. A redução é reflexo das medidas que restringiram o programa no período de ajuste orçamentário do governo federal.
STF
As controvérsias provocadas pelas mudanças no Fies levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a se pronunciar. A Corte decidiu ontem que a exigência de desempenho mínimo no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) só vale para novos contratos. Portaria de dezembro definiu que era necessário nota mínima de 450 pontos e não ter zerado a redação para participar do Fies. O documento não deixava claro a abrangência da alteração, que começou a valer em 30 de março. Na prática, a barreira só vem sendo aplicada a novos contratos, de acordo com o MEC.
O prazo para renovação de contratos terminou ontem. Segundo balanço parcial do MEC, dos 296 mil contratos de aditamento pendentes nos últimos 10 dias, restam 156.940 a serem renovados. O Fies atende a mais de 1,9 milhão de estudantes.
249,9 mil
Quantidade de novos contratos firmados até sexta-feira passada. Em 2014, foram 731,7 mil
A saia justa de Unger com o MEC
O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, Roberto Mangabeira Unger, tentou, ontem, contornar insatisfações do Ministério da Educação (MEC), que se sentiu alijado da discussão da versão preliminar de um documento divulgado pela SAE no fim de semana. Segundo Unger, o ;Pátria Educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional; ; cuja elaboração foi coordenada pela SAE e que reúne uma série de diretrizes educacionais ; está em consonância com o Plano Nacional da Educação (PNE).
;O PNE é o nosso guia. Ele organiza o arcabouço de metas e procedimentos ao qual o projeto Pátria Educadora procura dar conteúdo específico;, afirmou Unger, durante audiência pública na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Ele citou, como exemplo, a cooperação federativa. ;O PNE, em seu artigo sétimo, invoca o regime de cooperação dentro da Federação. Não define, porém, o conteúdo institucional desse regime.;
Sobre a participação do MEC na proposta, Mangabeira Unger disse que a pasta esteve presente nas discussões, iniciadas em fevereiro. ;O MEC participou e participa de todos os momentos de formulação da proposta e terá a responsabilidade de executá-la;, afirmou. O documento propõe a criação de uma rede de ensino federal de referência no ensino médio, apoio técnico a escolas com dificuldades, reformulação na formação e na escolha de diretores da unidades e estabelecimento de uma carreira federal para professores.
Para a deputada Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), que pediu a ida do ministro à comissão, esse foi apenas o ponto inicial dos esclarecimentos. ;Não adianta dizer que não houve constrangimento, pois teve constrangimento com o Ministério da Educação. Uma coisa é você ser chamado para uma reunião, outra coisa é você estar construindo junto;, disse. O MEC não se posicionou sobre as medidas propostas pela SAE. (MF)