Sonia Quintella de Carvalho faz do artesanato acessório de vestuário, ocupação e fonte de inspiração. Ela faz questão de ser vitrine viva de peças como o colar de capim-dourado trançado feito pelo grupo Juão de Fibra, aqui do Distrito Federal e um dos cadastrados na Rede ArteSol. Criada no ano passado, a plataforma (disponível em artesol.org.br/rede) é um canal para exposição de trabalhos e conecta artífices com lojistas e outros interessados. A iniciativa é apenas mais uma das várias criadas pela ONG da qual Sonia é presidente há dois anos. A afeição da mestra em marketing pelo artesanato vai muito além dos acessórios que usa: trabalhar em prol do desenvolvimento social e da valorização dos artesãos e de suas obras é motivo de satisfação profissional e pessoal.
O amor à causa é tão grande que a administradora deixou a carreira de executiva na iniciativa privada para se engajar no terceiro setor. Com o objetivo de salvaguardar o artesanato de tradição, a organização que Sonia preside foi criada em 1998 por Ruth Cardoso (1930-2008), antropóloga, professora universitária e primeira-dama do país durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso. A ArteSol ; Artesanato Solidário nasceu como um projeto de combate à pobreza em regiões de seca e, em 2002, virou uma ONG com mais de 100 projetos.
Como foi a transição de uma carreira executiva para o terceiro setor?
Na Alpargatas (rede de calçados) e na Triumph (multinacional de moda), fui diretora industrial, comercial e de marketing e, no grupo Gucci no Brasil, fui diretora-geral. Saí para trabalhar na ArteSol por paixão pelo artesanato e pela riqueza do setor. Basicamente, é paixão pelo Brasil, porque fico alucinada com o tanto que os artistas do nacionais são maravilhosos. Hoje sou 100% feliz: trabalho com o que gosto, mas o desafio é muito maior.
A que a ArteSol está se dedicando no momento?
Ela foi reestruturada no último ano, e vamos focar nos pilares mais importantes para a ONG: a salvaguarda do artesanato de raiz e o desenvolvimento humano e econômico de comunidades envolvidas com ele. Sob a liderança de Antonio Augusto Arantes Neto, montamos um conselho consultivo. Criamos a Rede Artesol, interface digital para nos comunicarmos com os 120 grupos que capacitamos nas 27 unidades da Federação. É um grande portal do artesanato.
Como você avalia os desdobramentos da Lei do Artesão (Lei n; 13.180/2015)?
É um começo válido, mas ainda está longe de promover a inclusão social do artesão. O PAB (Programa do Artesanato Brasileiro) vai lançar uma portaria que deve ajudar a consolidar esse trabalho. No entanto, ainda não é uma profissão reconhecida. Não existe nenhum tipo de previdência específica. A informalidade é a realidade, pois conseguir se formalizar é inacessível para muitos. Se a pessoa for MEI (Microempreendedor Individual), pagará R$ 50 mensais, o que, para quem tira R$ 120 por mês com artesanato, é caro. Sem essa estrutura, essas pessoas não se aposentam e, se ficam doentes, não conseguem trabalhar e perecem de fome. Sei que existe um rombo na Previdência, mas o governo precisa olhar para os artesãos de alguma forma. Além disso, podem até existir editais culturais, mas boa parte dos artesãos não têm acesso a eles, que são muito burocráticos.
Qual é a diferença entre artesanato de raiz e trabalho manual?
Entram na primeira classificação todo tipo de trançados, entalhes de madeiras, trabalhos de cerâmica que tem cuidado com a terra, bordado de raiz cultural, rendas, tecelagem em que não é usado nenhum maquinário industrial e tudo o que é feito com reciclagem. O modo de fazer tem que ser de tradição. Já trabalho manual qualquer um pode fazer, qualquer um pode colar uns olhos numa boneca de pano.
Qual é a importância de valorizar o artesanato?
É fundamental! Estamos falando de milhões de pessoas que trabalham com isso e têm problemas econômicos. Muitos dos artesãos estão inscritos no Bolsa Família e fazem disso apenas um complemento de renda. Precisamos de políticas públicas para que eles vejam isso como profissão, e esse trabalho pode até se tornar uma porta de saída do programa. Além disso, precisamos contar uma nova história do Brasil, e o nosso artesanato, que é espetacular, pode servir para isso. Temos uma herança tríplice ; europeia, indígena e africana ; que confere um caráter único e muito rico às obras daqui. O governo precisa entender a importância disso e valorizar. Países vizinhos, como Colômbia, Peru e México, têm políticas públicas muito mais adequadas à área.
Só o trabalho do governo basta?
Nada no mundo funciona só de governo. Precisamos de uma combinação de fatores: governo, sociedade civil e terceiro setor do qual fazermos parte. Acreditamos na eficiência das políticas públicas para mudar a realidade, pois a sociedade civil e o terceiro setor não conseguem fazer um trabalho de base. Esse assunto foi abandonado durante muito tempo, e está na hora de voltar a ser debatido. O problema é que, apesar de estar na pauta de vários ministérios, o tema nunca se tornou central para ninguém.
O artesanato pode se tornar prioridade neste momento?
Tem que virar. Nossa obrigação como ONG é cobrar e ajudar. A expectativa é que isso se torne prioridade da Casa Civil com o PAB e que, na Cultura, em que o novo ministro é o Marcelo Calero, uma pessoa espetacular, a causa ganhe a atenção que merece.
Como o artesanato de raiz é visto lá fora?
Não é visto. Quem pensa no Brasil não pensa em artesanato. Já quando se fala em Colômbia, México, Peru, Bolívia, Panamá, China e países da Europa, as pessoas se lembram de uma série de produtos típicos. Para falar a verdade, muitas vezes, o artesanato de raiz não é visto nem aqui dentro. Para o Brasil crescer, além de desenvolver a indústria e a infraestrutura, temos que investir nisso também.
Você vê perspectivas de mudança?
Sim, porque o jovem de hoje é muito mais antenado, preocupado com sustentabilidade e comunidade do que 10 ou 20 anos atrás, ou seja, as gerações mais novas se interessam mais pelo artesanato.Queremos incentivar mais casos como o da estilista Fernanda Yamamoto, que trabalhou com 60 rendeiras durante dois anos. No entanto, os filhos dos artesãos não querem continuar o trabalho dos pais porque enxergam o artesanato como coisa de gente pobre e sem futuro, e isso precisa mudar. Ele não precisa ser artesão, mas pode atuar como gestor para que os trabalhos da família e conhecidos sejam vistos como negócio.