Quando se fala em formação de pessoas para trabalhar com a primeira infância ; período que compreende de zero a seis anos de idade ;, é comum fazer uma associação com professores. No entanto, a gama de trabalhadores que deveriam receber capacitação a fim de atuar para garantir que crianças nessa faixa etária ; considerada essencial para garantir o pleno desenvolvimento de um indivíduo ; cresçam saudáveis, seguras e com a chance de adquirir todas as competências necessárias é muito maior. Médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, psicólogos, fonoaudiólogos e outros trabalhadores da saúde, assistentes sociais, advogados e juristas, agentes de segurança, designers, arquitetos e engenheiros entram nesse rol, na visão de Sara Barros Araújo, coordenadora do mestrado em educação pré-escolar do Instituto Politécnico do Porto, em Portugal; Patrícia Almeida, pesquisadora de formação de professores e didática na Fundação Carlos Chagas (FCC); e Anna Chiesa, professora de enfermagem e saúde pública da Universidade de São Paulo (USP).
As três participaram do 6; Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, entre as últimas segunda e terça, em Recife (PE), onde falaram a cerca de 480 pessoas sobre a formação de profissionais para a primeira infância. ;Há alguns cursos em que, inicialmente, poderíamos não perceber a associação com o tema. É o caso de arquitetura, urbanismo e engenharia, mas profissionais desses ramos são essenciais para gerar cidades amigas da criança;, comenta Sara Barros Araújo, mestre em psicologia e doutora em estudos da criança pela Universidade do Minho. ;Inclusive, isso é importante para que se construam escolas e creches adequadas;, complementa Patrícia Almeida, pedagoga, mestre e doutora em educação e pós-doutora em psicologia da educação.
Anna Chiesa, graduada, mestre e doutora em enfermagem e saúde pública e pós-doutora pela Florence Nightingale School of Nursing and Midwifery, em Londres, defende que seja feita uma reforma nas formações de profissionais que afetam o desenvolvimento infantil. Além de incluir conteúdos sobre o tema no currículo, as graduações devem dedicar uma abordagem sistêmica e multidisciplinar à temática. ;Na saúde, por exemplo, os cursos têm conteúdos sobre criança, mas o foco está na patologia ; não se pensa no desenvolvimento integral. O resultado é que os profissionais não sabem se comunicar com a família. Quando um paciente chega a um consultório, é praxe perguntar com o que ele trabalha; mas, ao atender uma criança, muitos não perguntam o que ela faz, se brinca, com o que brinca...;, observa. ;A reforma no ensino superior é necessária não em ampliação de carga horária, mas na maneira como o conteúdo é abordado.;
Ela acredita que a mudança nas graduações deve ser incentivada por organizações mobilizadas pela causa, como a Rede Nacional da Primeira Infância.
Patrícia pondera que não existe impedimento para que o tema seja melhor trabalhado: a carência está em priorizar. ;Do ponto da legislação, a possibilidade existe. As diretrizes da educação superior no Brasil têm caráter bastante aberto: não se define quais disciplinas devem ser ministradas, e as instituições têm possibilidade de desenhar currículos diferenciados. É um avanço, mas boa parte das universidades não se apropriou disso ainda. No caso específico da formação de professores, acredito que é preciso ter uma reformulação geral, porque o ensino é muito pulverizado, e a educação infantil acaba sendo deixada de lado.;
Na opinião de Anna Chiesa, professora da USP, uma opção para abordar conteúdos sobre crianças de até seis anos em diversos cursos é investir em extensão universitária, aliada à pesquisa, com um foco multidisciplinar. A docente alerta que é fundamental que a educação universitária se atente a essa temática para possibilizar uma sociedade que cumpre a legislação. ;O Marco Legal da Primeira Infância ; lei n; 13.257/2016, sancionada em março, que cria iniciativas voltadas à promoção do desenvolvimento integral das crianças do nascimento aos seis anos ; não se viabiliza se não trabalharmos a formação. Não adianta ter uma lei sem profissionais preparados para aplicar.;
A preparação para isso, no entanto, não deve se limitar às faculdades. ;Nem tudo pode ser feito na formação inicial. É preciso ter educação continuada para todos os profissionais;, destaca Sara, do Instituto Politécnico do Porto. ;Isso deve ser estimulado inclusive pelos locais de trabalho, algo que não acontece hoje;, pondera Anna Chiesa. Entre as características desejáveis entre quem construir uma carreira que afete a primeira infância estão curiosidade, empatia, engajamento pessoal e profissional e intersetorialidade.
Planejamento urbano
A Iniciativa Internacional Cidades Amigas da Criança (CFCI) foi lançada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 1996 para promover a resolução aprovada na segunda Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II), que transforma as cidades em locais habitáveis por todos e que ajudem a promover o respeito aos direitos de meninos e meninas. Saiba mais em: www.unicef.org.
Falta valorização
Um problema para atuar em primeira infância é que esse tema sofre certa depreciação. ;A docência, em geral, é desvalorizada, mas a de educação infantil é ainda mais;, percebe Patrícia Almeida. Anna Chiesa acredita que, na saúde, a desvalorização ocorre com relação à atenção básica. ;A área mais visada é a que envolve mais tecnologia, como UTI. Poucos querem ser médicos de família. Mas atenção básica é a que pode lidar mais com o desenvolvimento da criança;, acrescenta.
* A jornalista viajou a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal