[VIDEO1]
Martelo, alicate, lima, agulha, faca, lixas, linha, borrachas, pregos, taxas, cola; São todos instrumentos de trabalho manuseados pelas mãos treinadas de José Cícero Batista de Sousa. ;Faço qualquer conserto que o sapato precisar;, garante. Experiência ele tem de sobra: são mais de 40 anos trabalhando como sapateiro em Brasília. Questionado sobre o que gosta na atividade, não tem dúvidas ao responder: ;tudo!” Ele preenche o tempo entre conversas com clientes e a incessante busca pelo melhor jeito de reformar cada calçado. O piauiense faz do Setor Comercial Sul (SCS) seu escritório. A rotina é a mesma há muitos anos: acordar cedo, sair de casa em Águas Lindas (GO) e pegar um ônibus em direção à Rodoviária do Plano Piloto. São cerca de 55km de percurso e mais de uma hora dentro do coletivo.
A pé, vai até a Quadra 2 do SCS; mais especificamente, a garagem do Edifício Oscar Niemeyer, onde guarda o carrinho que usa para trabalhar, com autorização da administração predial. ;Assim, fico tranquilo, graças a Deus;, relata. Depois, precisa dar uma volta na quadra empurrando os apetrechos até chegar ao ponto dele, no edifício Presidente Dutra. É lá, numa espécie de esquina entre o Sesc (Serviço Social do Comércio) e a Fundação Cultural Palmares, que José Cícero estaciona o carrinho e coloca as mãos à obra. Quietinho, sentado, recebe os pedidos dos clientes que passam por ali: consertar sola, trocar salto, colar ou costurar partes de calçados, bolsas ou cintos. Os serviços não têm preço fixo, cada orçamento é feito na hora. Por volta das 16h, o sapateiro começa a arrumar as ferramentas para voltar para casa.
A lida diária não é fácil ; carregando peso e mexendo com equipamentos cortantes ;, por isso não há quem não se espante quando José Cícero revela a idade: são 91 anos. A saúde está 100%: ;não tenho nada;. Dia, mês e ano do aniversário dele levam o número 6: o autônomo nasceu em 26 de junho de 1926, ainda durante a República Velha. As marcas no rosto e nas mãos do nonagenário guardam muitas histórias. Ele está aposentado há muitos anos, mas nem cogita deixar a atividade, que serve como complemento de renda. ;Deus ajuda quem trabalha;, defende. Questionado sobre se pensa em deixar a labuta, rebate: ;para quê?; Seu José tem uma família numerosa: oito filhos e seis filhas. De netos, bisnetos e tataranetos perdeu os cálculos. ;Nem consigo contar, mas é um bocado.;
A infância do sapateiro também foi marcada por casa cheia: ele é o segundo de sete irmãos. Depois que a mãe dele morreu, o pai se casou novamente e teve mais 15 filhos. ;A minha irmã mais velha mora no Gama e tem 96 anos;, diz. A primeira esposa dele morreu em 2001. ;Perdi a mãe da turma em 22 de janeiro de 2001;, conta. Com a segunda mulher, que tem 54 anos, não teve filhos e está há 16 anos. ;Ela era vendedora de camelô e nos conhecemos aqui;, recorda. Em Águas Lindas, mora com ela e o enteado. ;É uma cidadezinha boa. Antes de lá, morei em Ceilândia. Tenho uma casa no P Sul e minha filha mora nela.;
Êxodo
Antes de fixar raízes na capital federal, seu José passou por outra mudança. ;Saí de Parnaíba e fui para Chapadinha das Mulatas, no Maranhão, onde passei 16 anos;, rememora. A mudança para o Centro-Oeste teve motivação familiar. ;Eu tinha muitos irmãos aqui ; tinha não, ainda tenho: são quatro, os outros morreram. Meu filho queria porque queria conhecer Brasília e resolvi vir mais ele.; Desde então, nunca mais foram embora. A escolha do ponto no Setor Comercial Sul não foi aleatória: uma irmã dele trabalhava na Telebrasília, num prédio em frente, que hoje é da Oi. ;Ela arranjou um serviço de limpeza para mim lá, logo que cheguei, que começava às 18h. Aí, de manhã, eu vinha para cá trabalhar com sapato ; fiquei num e noutro sete anos. Depois que saí, virei só sapateiro;, recorda.
Foi na cidade natal que José aprendeu os segredos do mundo dos sapatos com a ajuda de um cunhado. ;Em Parnaíba, trabalhei mais de 20 anos com sapato, mas era fabricando, em indústria de calçado;, lembra. ;Quando cheguei a Brasília, não encontrei indústrias: aqui tem muita loja, mas os sapatos vêm todos de fora. Aí, vi uns caras consertando calçado, no meio da rua;, conta. Foi assim que ele teve a ideia de passar a fazer o mesmo. Antes de se tornar sapateiro, ele trabalhou em embarcações. ;Meu pai era madeireiro e eu o acompanhava, vendendo madeira para as indústrias pelo rio;, conta. ;No Maranhão, trabalhei na roça, plantando arroz, feijão, milho, melancia;, rememora.
Clientela
Seu José compra os materiais necessários para o serviço em Taguatinga e outras localidades e não calcula quanto obtém de gasto e de lucro. A boa notícia é que nunca falta serviço. ;Conserto muitos, depende do dia. Às vezes, chego a atender 20 ou até 30 clientes. Outros levam logo, outros buscam depois;, conta. Fidelizar o público, para ele, não é mistério: ;eu faço o que é para fazer, eles vão gostando e voltam;. A clientela é variada. ;Todo mundo tem sapato velho e desmantelado para arrumar; aqui vem gente de tudo quanto é lugar. O povo me procura todo dia, toda hora;, percebe. No entanto, ele nota que muita gente prefere comprar algo novo.
O cliente Valdir Pires, 61, também faz essa observação. ;Só trago para consertar sapatos bons. Se for algo barato, não vale a pena.; O economista é só elogios para o desempenho de José Cícero. ;Ele faz tudo direitinho;, comenta. Outra cliente, Caroline Venancio, 40, trabalha na parte administrativa do Sesc há 18 anos e sempre observa o esforço do sapateiro. ;Sempre o vejo carregando aquele carrinho pesado, até na chuva. Às vezes, pergunto se ele quer ajuda, mas ele não aceita. E não falta um dia sequer: está sempre aqui;, conta. ;Ele é uma gracinha e o trabalho, muito benfeito.;