Ana Paula Lisboa
postado em 19/02/2018 12:08
Maria Aparecida Ramos de Meneses, conhecida como Cida Ramos, é símbolo de superação entre pessoas com deficiência. Natural de Sapé (PB), filha de um caminhoneiro e de uma dona de casa, teve paralisia infantil aos 3 anos, motivo pelo qual usa muletas. Enfrentou desafios no seio da própria família, nos ambientes escolar, acadêmico e laboral e, com liderança nata, acabou se tornando referência em todos esses contextos. Aos 53 anos, é realizada tanto na vida pessoal quanto na profissional: casada há 30 anos, mãe de duas advogadas de 24 e de 25 anos, é secretária de Desenvolvimento Humano da Paraíba desde 2011 e professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduada e mestre em serviço social pela mesma universidade, fez doutorado na área na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Começou a se engajar politicamente ainda na adolescência. Em 2016, disputou a eleição para a prefeitura de João Pessoa e ficou em segundo lugar na disputa. No último carnaval, participou do bloco Portadores da Folia e discursou sobre a importância da presença de pessoas com deficiência em todos os espaços.
Como foi sua infância e como sua família encarou sua deficiência?
Meus pais tiveram 13 filhos, dos quais sobraram sete filhas. Quando eu era pequena, teve aquele surto de pólio na minha cidade, por isso há um grande número de pessoas com deficiência lá. Para a minha mãe, a carga de trabalho era pesada: ela me levava para fazer fisioterapia todos os dias. Minha avó teve papel fundamental na minha criação: me ensinou a não aceitar que ninguém me tornasse menor e me impulsionou a estudar. Na escola e entre minhas irmãs, sempre assumi posição de liderança.
A acessibilidade foi realidade durante sua vida escolar?
Que dificuldades enfrentou?
O primeiro problema não era a acessibilidade, era o transporte: era preciso que alguém me levasse. A escola tinha escada, era difícil de subir. Mas eu adorava ler e isso modificou minha vida. Estudar, para mim, era algo fantástico. Claro que houve dificuldades: os próprios profissionais não sabiam lidar com a presença de uma criança com deficiência, eu que forçava a inclusão. Quando a professora de artes organizou uma apresentação de teatro para o Dia das Mães, sugeriu que, em vez de participar, eu entregasse flores para a minha mãe. Não aceitei e subi ao palco como todo mundo. Eu sempre procurava uma posição para mim. Não sofri com preconceito de colegas porque meu comportamento forçava liderança e respeito. Sempre tive de arrombar portas.
A senhora se mudou para João Pessoa para fazer o ensino médio longe da família. Como foi esse processo?
Quando as filhas terminavam o primeiro grau, meus pais as mandavam para fazer o segundo na capital e, assim, ter mais chances de passar no vestibular. Quando chegou a minha vez, foi um problema. Diziam que eu não deveria ir, que seria muito difícil. Minha tia não queria que eu estudasse no mesmo colégio da filha dela. Os outros tios achavam que meus pais deviam comprar uma máquina de costura para mim e me deixar fazendo trabalhos manuais. Mais uma vez minha avó foi incisiva e determinou que eu viria como todas as outras irmãs. Então, vim. Mais uma vez, a escola não estava preparada para me receber e achei voz no movimento estudantil secundarista.
Por que fez serviço social?
Para lidar com pessoas e políticas públicas. Sempre achei que o acesso a políticas públicas, inclusive a educação, pode mudar as coisas. Quando entrei na UFPB (e andava a pé dois quarteirões e pegava dois ônibus para chegar lá), já fazia parte de lutas sociais, tinha descoberto essa cidadania, compreendido o que é o preconceito e continuei engajada. Eu me tornei presidente do Centro Acadêmico de Serviço Social e, depois, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Durante as eleições, a chapa contrária chegou a fazer charge, me desenhando como uma tartaruga. Mas ganhamos e fomos uma das chapas mais combativas de todos os tempos. Em 1984, a universidade estava em crise e o restaurante universitário fechou. Peguei minha bolsa e viajei para Brasília sozinha procurar o ministro da Educação, que, na época, era o Marco Maciel. Fui sem hotel nem nada reservado. Fiquei lá na frente do ministério até ser recebida e consegui o dinheiro para a universidade reabrir o restaurante. Foi um fato inusitado porque o reitor tinha falado com o ministro três vezes e não tinha conseguido.
A senhora enfrentou barreiras para ser professora?
Pessoas se perguntavam como eu poderia dar aulas ;daquele jeito;, usando muletas. Quando fui fazer doutorado no Rio de Janeiro, houve colegas que diziam que eu não conseguiria sair da Paraíba para isso. Foram os mesmos comentários que ouvi quando me casei com uma pessoa que não é deficiente e quando engravidei. Na UFPB, não havia rampas, banheiros adaptados... A reitoria tinha uma escada enorme e, muitas vezes, a reunião era no último andar. Foi preciso muita luta para, finalmente, colocarem um elevador, em 2010, sendo que dou aulas lá desde 1992.
Como a senhora avalia as políticas públicas de inclusão?
A gente avançou muito no sentido de fazer com que a pessoa com deficiência seja protagonista da própria história. Antes a gente via muito a família indo atrás de direitos, alguém sempre falou por nós. Isso tem mudado. Mas falta muita coisa. Até para criar medidas de acessibilidade, é preciso que uma pessoa com deficiência participe: para um cadeirante ou quem anda de muleta, como eu, às vezes, uma rampa muito longa é muito problemática. Então é preciso que arquitetos escutem mais essa população, assim como todos os outros setores da sociedade. A sociedade, o estado, o país que é deficiente porque não é preparado para que todos os seres humanos vivam plenamente. Uma sociedade inclusiva começa no poder público, garantindo direito de se alimentar; de sair de casa; de ir à escola; de ter transporte para chegar lá; e, chegando lá, de ter a atenção especializada necessária para que o aprendizado seja possível. Isso é fundamental porque a escola é uma política pública que possibilita acesso a outras políticas públicas.
A falta de formação e as dificuldades no processo de aprendizagem impedem que mais pessoas com deficiência cheguem ao mercado de trabalho?
O grande problema é falta de vontade de incluir essas pessoas e ter respeito. Muitas empresas dizem que abrem vagas por cotas e não acham pessoas para preencher. De fato, faltam as duas coisas: abertura e formação. Quantos talentos não têm sido desperdiçados?
Por que não é raro que, no caso de um filho ter deficiência, a própria família vire as costas?
A família está dentro de um contexto social de uma sociedade que rejeita. Uma mãe sempre almeja que o filho seja mais do que ela foi. Quando vem com deficiência, a primeira reação é ter um susto, é duro porque sabe que a própria sociedade não tem estrutura para amparar, a sensação é de que será um filho eterno ; mas, se a pessoa for estimulada desde cedo, vai longe. A pessoa com deficiência é um ser humano e todo ser humano tem capacidade ilimitada. Você nunca pode dizer a um ser humano qual é o limite dele. O problema da pessoa com deficiência é que o tempo inteiro a sociedade aponta a limitação dela.
Que resultados a senhora tem alcançado como secretária de Desenvolvimento Humano?
Temos feito muito esforço em prol do registro e do laudo médico de pessoas com deficiência. Também temos atuado fortemente na profissionalização e no acesso a emprego e renda. Na Paraíba, 27,7% da população é deficiente, são 700 mil pessoas.