Trabalho e Formacao

Afinal, quem pode ser acupunturista?

O STF decidiu não julgar os recursos do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional contra decisão de considerar que essa especialização terapêutica só possa ser realizada por médicos, veterinários e dentistas

Thays Martins
postado em 25/03/2018 16:06

O STF decidiu não julgar os recursos do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional contra decisão de considerar que essa especialização terapêutica só possa ser realizada por médicos, veterinários e dentistas

Parece que está perto do fim a longa batalha pelo direito de exercer a acupuntura. A contenda é travada desde 2002, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) entrou com processo contra os conselhos de fisioterapia e terapia ocupacional, psicologia, farmácia, biomedicina, enfermagem e, posteriormente, de educação física. Por enquanto, quem está ganhando na Justiça a permissão para praticar a terapia são os médicos, algo contestado por outras classes. Na visão do CFM, as únicas áreas, além da médica, que poderiam usar a técnica seriam a odontologia e a medicina veterinária, mas estritamente em seus campos de atuação. O caso voltou à tona quando, em fevereiro, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), publicou decisão em que dizia que o recurso interposto pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Coffito) não poderia ser julgado pela mais alta corte brasileira por não ter conteúdo diretamente ligado à Constituição.
Assim, o jurista determinou que seja cumprida a decisão do Tribunal Regional Federal da 1; Região (TRF1), que permitiu apenas a profissionais da medicina trabalhar com o tratamento com agulhas. O Coffito recorreu da sentença e o recurso deve ser julgado pelo Plenário do STF e também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas não há data prevista para a apreciação da matéria. Enquanto isso, clínicas de diferentes especialidades oferecem sessões da prática milenar. Para a biomédica Kassia Guedes Duarte, 26 anos, não há motivos para que outros trabalhadores da saúde sejam impedidos de exercer a atividade. ;A anatomia que a gente vê na faculdade é a mesma que a dos médicos. Além disso, a agulha é aplicada de modo superficial, sem aprofundar. Para completar, não fazemos diagnóstico, o paciente passa pelo médico primeiro;, explica ela, que é pós-graduada pela Associação Brasileira de Acupuntura (ABA).

No entendimento do CFM, porém, profissionais de outras áreas de saúde não estão aptos a realizar a prática. ;Esses conselhos estão extrapolando suas funções porque não é só colocar agulhas. O objetivo é atingir inervações específicas. Primeiro, tem que ter um diagnóstico de doença; depois, um prognóstico; por último, uma intervenção invasiva, como é o caso;, argumenta Fernando Genschow, presidente do Colégio Médico Brasileiro de Acupuntura (CMBA), médico epidemiologista e coordenador central de Acupunturiatria na Secretaria de Saúde do Distrito Federal. A lei n; 12.842/2013 (que dispõe sobre o exercício da medicina) não autoriza profissionais que não sejam da medicina a fazerem todas essas etapas. Psiquiatra e conselheiro do Conselho Federal de Medicina pelo estado de Goiás, Salomão Rodrigues acrescenta que a acupuntura é uma especialidade médica, por isso, outras classes não teriam autorização para exercê-la.

;É uma técnica da medicina oriental apropriada pela ocidental. É um tratamento que depende de um diagnóstico de doença;, argumenta. De acordo com ele, a consequência de outros profissionais atuarem no ramo não precisa ser exatamente gerar um risco ao paciente, mas, sim, frustração: a pessoa pode se decepcionar. ;Ela pode não ter o resultado que está buscando porque não é simplesmente uma massagem;, diz. Salomão explica que em outros países a prática é exclusiva da medicina. ;Esse tratamento é médico e é assim no mundo inteiro. Só no Brasil que outros profissionais podem fazer;, conta.

;Na China existe a formação em medicina oriental, mas são médicos que trabalham com isso;, diz. A Associação Brasileira de Acupuntura (ABA), por meio de nota, se disse favorável a que qualquer profissional com especialização na área possa atuar no ramo. ;Somos totalmente favoráveis à prática da acupuntura por quem tem formação em acupuntura e não somente em outro campo (medicina, por exemplo). O SUS (Sistema Único de Saúde) tem acupunturistas médicos e não médicos atendendo a população. Já formamos milhares de acupunturistas que têm graduação em medicina ou em outras áreas.;

Polêmica


O Coffito informou, por meio de nota, que a decisão do STF não altera a legalidade do exercício da acupuntura por fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, já que ela somente impede que o recurso seja julgado pelo Supremo. Mais tarde, a decisão do STJ é que apontará se há legalidade ou não na resolução que autoriza esses profissionais a exercerem a prática. ;A decisão publicada em 14 de fevereiro não é definitiva, tampouco põe fim à elástica discussão sobre o tema. Seguem válidos os comandos normativos do Coffito e absolutamente livre o exercício da acupuntura por fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais;, esclareceu. O conselho usa essa informação para tranquilizar profissionais e pacientes. ;Continuem a confiar na fisioterapia e na terapia ocupacional brasileiras, inclusive contando com a acupuntura como recurso terapêutico;, continuou a instituição de classe, em nota. Representantes da medicina, no entanto, não concordam com isso.

O médico acupunturista Fernando Genschow, com especialização na área pela Beijing University of Chinese Medicine, argumenta que não é uma questão de competência, mas, sim, de regulamentação. ;Todos são profissionais muito importantes, mas isso que estão fazendo é uma impropriedade legal.

Qualquer profissional pode saber coisas de outras profissões, mas, mesmo que saibamos, não podemos ir lá e fazer. Isso não é questão de democracia ou corporativismo médico, é porque, ao fazerem acupuntura, estão invadindo a área do outro;, conclui. Para o professor de medicina chinesa Tobias Velho, da Escola Nacional de Acupuntura (Enac), o que deveria acontecer era a regulamentação da acupuntura como um curso de educação superior. Desde 2003, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n; 1549, de autoria do deputado Celso Russomanno (PRB/SP), com esse teor. ;Os médicos fazem lobby há muito tempo para transformar a medicina chinesa em uma especialidade médica. Por ser um grande nicho de mercado, eles estão de olho;, observa Tobias Velho.

;Hoje, cada área da saúde adapta uma ciência completa, como se fosse uma técnica. Por isso, muitos médicos e juristas não querem a regulamentação;, completa. Ele fez curso de tai chi chuan tradicional da Família Yang (arte marcial chinesa) e de chi kung (exercício de cultivo da energia) na Sociedade Brasileira de Tai Chi Chuan e Cultura Oriental (SBTCC) em São Paulo, escola que representa em Brasília, e explica que a acupuntura está no Brasil desde a década de 50. ;Naquela época, o conselho de medicina não reconhecia a prática como especialidade médica. Passou a ser admitida a partir da década de 1970, quando os efeitos da técnica começaram a ser comprovados pela ciência e quando perceberam que a terapia dava dinheiro;, comenta. ;Na verdade, a medicina tradicional chinesa é uma racionalidade médica única, assim como a ocidental e como a ayurveda, indiana. Isso quer dizer que cada uma tem uma forma de pensar sobre a saúde, a fisiologia, o corpo e a mente;, afirma ele, que defende a existência de um curso superior específico em acupuntura.

Na rede pública do DF

A acupuntura é oferecida pelo SUS. Em Brasília, só o Hospital de Base (foto) atende, em média, 500 pacientes por mês, fazendo entre 8 mil e 10 mil procedimentos mensais. Cinco profissionais atuam diariamente para dar conta da demanda. Ao todo, 16 unidades de saúde no DF oferecem o tratamento gratuitamente. A Secretaria de Saúde trabalha com isso desde 1989. Ao todo, 21 especialistas são responsáveis pelo atendimento em diversas unidades.

Visão de paciente
Paciente de uma biomédica acupunturista há dois anos, Neide Fátima de Oliveira, 54 anos, procurou o tratamento por não aguentar mais conviver com fortes dores de cabeça. ;Procurei por conta própria. Tenho crises de enxaqueca desde a adolescência, fiz vários tratamentos com neurologista, psicólogo, nutricionista, pratico exercícios físicos e até mesmo consultei psiquiatra;, diz.
Com a acupuntura, relata Fátima, as crises estão diminuindo. ;Antes tinha quase todos os dias, agora é uma ou duas vezes ao mês. Até mesmo médicos reconhecem a melhora e recomendaram que eu continue com as sessões semanalmente;, conta. A professora aposentada diz que, para ela, não importa se a técnica será aplicada por um médico ou não. ;Desde que o profissional tenha o curso e competência, é suficiente;, opina.

O STF decidiu não julgar os recursos do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional contra decisão de considerar que essa especialização terapêutica só possa ser realizada por médicos, veterinários e dentistas

Avaliação legal

De acordo com o professor de direito trabalhista da Universidade Católica de Brasília (UCB) Alessandro Costa, apesar de a decisão do STF ter sido de um único ministro, ela impede que outros profissionais que não sejam médicos exerçam a profissão. ;Houve julgamentos nesse sentido contra outros conselhos. A resolução do Coffito permitia que fisioterapeutas fossem acupunturistas, mas o STF entendeu que a prática é inerente aos médicos, então essa regulamentação que cada área tem passa a ser inconstitucional;, esclarece.

Apesar disso, ele explica que caberia ainda recursos para que a matéria possa ser julgada pelo Plenário do STF. ;Essa usurpação por parte de outros profissionais de atividade que é da medicina pode gerar ações de reparação de danos caso ocorra algo com um paciente;, diz. O professor, que é mestre em ciências políticas pelo Centro Universitário Euro-Americano (Unieuro), explica, ainda, que a decisão do ministro Gilmar Mendes é baseada no artigo 5; da Constituição, que estabelece critérios para exercício das profissões.

O que dizem outros conselhos?

Confira notas enviadas por outras entidades de classe interessadas no assunto:

;Julgamento do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4; Região confirmou a legalidade da Portaria 971/2006 do Ministério da Saúde, que inseriu a prática da acupuntura no SUS e reconheceu seu caráter multiprofissional. A regulamentação da acupuntura pelos conselhos (de enfermagem, fisioterapia, psicologia, biomedicina, farmácia e fonoaudiologia) está judicializada, o que, no momento, não impede a prática.;
Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)

;A decisão mencionada não atinge os profissionais de educação física, haja vista a ação ter como partes o CFM e o Coffito. Em 2004, o Conselho Federal de Medicina propôs ação judicial para impedir a prática por educadores físicas, no entanto, a 15; Vara Federal do Distrito Federal julgou improcedente o pedido. O CFM recorreu e o TRF da 1; Região deu provimento à apelação. Nós interpomos recurso, que ainda não foi julgado.;
Conselho Federal de Educação Física (Confef)

;O fato de não estar mais em vigor a resolução/CFF n; 353/2000 do CFF, bem como as normas análogas de outras profissões que também restaram judicializadas (como psicologia e enfermagem), não significa que a acupuntura se trata de ato privativo de médico ou que os demais profissionais estejam impedidos de realizá-la. O Poder Judiciário apenas se manifestou no sentido de que, como não há legislação sobre a matéria no país, as entidades fiscalizadoras de profissões regulamentadas não podem legislar, ou seja, editar resolução sobre o assunto, inclusive o CFM. Há entendimento de que a prática é livre no país, não vedada aos farmacêuticos ou qualquer outro profissional, conforme julgamento do TRF da 1; Região, que considerou livre o exercício profissional, ante a ausência de lei específica.;
Conselho Federal de Farmácia (CFF)

*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação