Thays Martins, Eduarda Esposito*
postado em 18/01/2019 17:39
Apenas 55 pessoas, entre as 4.122.423 que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2018, conseguiram nota mil na redação. O número, apesar de maior do que o da edição passada, quando 53 estudantes alcançaram o feito, ainda contrasta com os que zeraram a prova: 112.559, um total de 2,73% dos candidatos. ;A nota mil é uma exceção;, destaca o professor de redação do Descomplica Rafael Cunha. O tema desta última edição foi "Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet".
Uma dessas felizardas a gabaritar a redação foi Thais Saeger, 28 anos. Estudando para o Enem há um ano, ela ficou bastante contente com o resultado. ;Essa nota me surpreendeu, eu não esperava;, diz. O segredo do feito foi muito treino e acertar na estrutura. ;No cursinho, tinha discussões por eixos temáticos, e eu fazia uma redação por semana. Devo ter feito umas 70 no ano. Quando vi o tema, de cara, fiquei preocupada, tive dificuldade em entender, mas os textos motivacionais ajudaram bastante;, explica. ;O que pesa muito é a estrutura. Ela tem que estar organizada e é interessante citar algum filósofo, mas tem que estar relacionado. No meu caso, eu expliquei como acontece a manipulação e a relacionei com Paulo Freire, falei também a que interesses isso atende, como o capitalismo;, completa a moradora de Niterói (RJ).
Apesar disso, ela não aprovou muito a escolha do tema. ;Uma crítica que tenho é falar de algoritmos, achei injusto. Tem gente no Brasil que não tem nem internet, mas achei o tema atual;, comenta ela, que é graduada e mestre em administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após ter tido uma doença, ela resolveu largar o emprego na área financeira de uma empresa e se dedicar a estudar para passar em medicina.
Outro exemplo de redação nota mil foi a de Lucas Felpi, 17 anos. Recém-formado no ensino médio pelo Colégio Rio Branco em São Paulo, ele conta que estudou bastante para a redação e que acredita que referências consultadas antes da prova o ajudaram a fazer um texto mais embasado. ;Sempre tentei deixar uma marca de autoria no texto, coisas de que eu gosto. Citei o livro 1984, a série Black Mirror, a Escola de Frankfurt e o filósofo Zygmunt Bauman;, lembra.
Para fazer o texto ele recorda que usou em torno de duas horas, mas não se arrepende. ;Fiz a redação primeiro porque preciso ter a cabeça tranquila já que ela exige mais. Fiz o rascunho e fui passando a limpo por parágrafos. Acabei demorando mais do que o necessário, eu imagino, mas, vendo o resultado, eu fico agradecido;, afirma. Agora, ele se prepara para se inscrever no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e tentar uma vaga para engenharia da computação na Universidade de São Paulo (USP). ;Eu gostei bastante do tema. É atual e uma discussão importante;, ressalta o filho de uma empresária e de um engenheiro de produção.
A chave é persistência
A jovem Laís Mesquita Câmara, 18 anos, de Fortaleza (CE), também está entre os 55 candidatos que tiraram nota mil na redação. Laís conta que esta foi a terceira vez que tentou o exame e, só agora, conseguiu uma nota tão alta na produção textual. Na primeira tentativa, em 2016, ainda estava no segundo ano do ensino médio e, em 2017, não conseguiu nota suficiente para o curso desejado. Com o objetivo de ingressar em medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC), a jovem revela que não esperava obter essa nota. "Eu queria muito, mas nunca passou pela minha cabeça conseguir", confessa. "No momento de ver a nota, só eu, minha mãe e meu irmão estávamos em casa. Quando eu olhei e vi o mil, comecei a chorar e todo mundo chorou comigo, me abraçando.; Filha de uma professora e de um engenheiro elétrico, a cearense explica o que teve de fazer para realizar o feito. "Eu fazia uma redação por semana e, ao me aproximar da data do exame, aumentei a frequência para dois ou três textos", lembra.
Sobre o tema, ela conta que ficou muito assustada por não ter estudado esse assunto e demorou muito na hora de fazer a produção textual. "Sempre usei repertório nos meus textos, definia o que eu iria colocar na redação; então, citei um episódio da série Black Mirror e os sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer, que falam sobre a indústria cultural", exemplifica. Laís também é muito grata à professora de redação do cursinho que fez em 2018 para prestar o Enem. "As dicas dela foram essenciais para eu conseguir essa nota. Ela me ensinou um modelo de texto que não era engessado. Aprendi com ela não a colocar palavras, mas a construir a estrutura da redação, como fazê-la", relata a estudante. Pensando na carreira dentro da medicina, Laís ainda não tem nenhuma especialização em mente. "Eu prefiro não me comprometer ainda porque, quando a gente entra, é um mundo novo, vê muitas coisas novas e nunca sabemos qual a área com a qual teremos mais afinidade. Então, prefiro chegar lá e ver com o que eu irei me identificar mais", relata.
Resultados mantidos
[SAIBAMAIS]
Apesar de haver mais notas mil na edição de 2018, estatisticamente os resultados não são tão diferentes assim dos da edição de 2017. No caso das notas zero, em 2018 houve uma diminuição. Enquanto, em 2017, 309.157 alunos não pontuaram na redação; na última edição do exame, este número baixou para 112.559. De acordo com o professor de redação Rafael Cunha, a tendência é que, ao longo dos anos, mais alunos tenham aprendido o que é esperado na prova. ;Estatisticamente, não tem fugido do padrão. Então, a gente sabe o que esperar nos próximos exames. Os critérios que eram obscuros estão cada vez mais claros;, acredita.
O professor do Colégio Marista João Paulo II Gabriel Remigton concorda. ;Esse resultado era esperado. Nas últimas edições, não passou de 70 o número de pessoas que conseguiram nota máxima. Então, não é surpresa;, avalia. ;Esse resultado reflete que ainda falta ao estudante a leitura e o treino da escrita;, destaca a professora do Sigma Ângela Miranda.
Para Gabriel Remigton, a diminuição do número de notas zeros é um indicativo de que os candidatos estão cada vez mais informados. ;Tem havido maior divulgação sobre o que ocasiona a nota zero, principalmente pelas redes sociais, por parte do Ministério da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Assim, os candidatos estão mais cientes. Infelizmente, em algumas regiões do Brasil, essa desinformação ainda existe;, destaca.
Tema complexo
O tema de 2018 foi "Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet", o que remeteu a questões como algarítimos, redes sociais e fake news, por exemplo. Para o professor Gabriel Remigton, porém, não era algo tão complexo quanto parecia. ;Era até relativamente mais fácil do que o do ano anterior, que envolvia algo mais específico sobre surdez. Mas o que pode ter acontecido é o candidato ter se confundido. Muita gente achou que era exclusivamente sobre fake news, que podia estar envolvida, mas não era algo exclusivo sobre notícias falsas;, explica.
Para a professora Ângela, o tema era assunto do cotidiano dos jovens. ;A aposta antes da prova era no tema ;fake news; que tem estreita relação com ;manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados;. Pois falar da web é falar do mundo dos jovens, já que ficam praticamente 24 horas conectados;, afirma.
*Estagiárias sob supervisão de Ana Sá