Jornal Correio Braziliense

Trabalho e Formacao

Pouco mudou para as empregadas seis anos após a PEC das Domésticas

Essa é a conclusão de especialistas e trabalhadores do ramo. A legislação trouxe mais valorização para a categoria e acaba de completar mais um aniversário. No entanto, pouco mudou na prática. E os números da informalidade estão em alta

Há seis anos, os trabalhadores domésticos brasileiros conquistaram direitos trabalhistas, como Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com recolhimento de 8% do salário; jornada de trabalho fixada em oito horas diárias e 44 horas semanais; pagamento de horas extras (acima de 50% do valor do horário normal); recebimento de multa por demissão sem justa causa; e intervalo durante o expediente. Os benefícios foram conquistados por meio da Emenda Constitucional n; 72/2013 ; que ficou conhecida como PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas ; e regulamentados por meio da Lei Complementar n;150/2015. Outras garantias, como salário mínimo, férias e 13; salário, já eram obrigatórias e previstas no conjunto de leis trabalhistas, mesmo assim, foram incluídas nas novas normas. A conclusão de especialistas é de que as alterações legislativas pouco modificaram a realidade de quem presta serviços do tipo.

Até porque a grande maioria das trabalhadoras do ramo atua na informalidade (veja gráfico Retrato do emprego doméstico) e, portanto, não vê o efeito prático das mudanças. Para piorar, pesquisas revelam que o número de empregadas com carteira assinada tem diminuído; enquanto o das que atuam sem vínculo ou como diaristas tem aumentado. ;Muitas estavam na informalidade antes da PEC e, depois, se não foram demitidas, continuaram sem carteira assinada. Algumas por falta de conhecimento de seus direitos. Outras, por medo de ficarem desempregadas, aceitam trabalhar na irregularidade;, explica Samara Nunes, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do DF e das Cidades do Entorno (Sintrado/DF). Gilvaci Azevedo, mestre em ciências políticas, cidadania e democracia pelo Centro Universitário Euro Americano (Unieuro), acredita que a emenda representa um avanço para a categoria, mas não pode ser considerada garantia de mudanças. ;Ainda não temos estatísticas seguras sobre os impactos da PEC nos empregos domésticos;, aponta.

;Porém, ainda existem falhas, casos em que não há cumprimento da legislação, não atingindo plenamente todos da categoria;, comenta. A cientista política considera que a legislação ainda é muito nova, mas tem importância. ;A PEC veio para trazer um respeito por parte da população para com os inseridos na classe de domésticos, mas ainda falta muito para estabelecê-lo de fato;, diz. ;É necessário trabalhar a questão da educação do povo, de modo a instaurar apreço pela profissão;, completa. Apesar de não ser valorizada como deveria, a categoria é bastante representativa: segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), há cerca de 7 milhões de pessoas no Brasil que deixam as próprias casas para cuidar do lar de outras. É a maior cifra no mundo. Em segundo lugar em quantidade de trabalhadores do tipo, está a Índia (4,2 milhões), seguida por Indonésia (2,4 milhões) e Filipinas (1,9 milhão).

Realidade das domésticas


Moradora da Cidade Ocidental (GO), a baiana Marilene Souza, 36 anos, se mudou para o Centro-Oeste aos 26 em busca de emprego. Trabalhou na casa de uma família no Guará 2 por indicação da irmã, que também era doméstica. Ela conta que, antes da renovação da legislação, sofreu injustiças ao ser demitida. ;Cheguei lá um dia e, simplesmente, disseram que não dava mais: me mandaram embora sem nenhum tipo de aviso, sem pagar a indenização pelo meu serviço;, lembra. Ela chegou a consultar um advogado, mas acabou fazendo um acordo com o ex-patrão. ;Acho que foi uma decisão errada, pois consegui apenas $ 4 mil de rescisão por seis anos de serviços, quando deveria ter ganhado R$ 15 mil;, diz. Marilene acredita que se a PEC das Domésticas fosse realidade na época, teria mais respaldo para lutar por seus direitos.

Hoje, atuando com carteira assinada, ela não enfrenta grandes problemas, mas relata que algumas questões garantidas na PEC não foram formalizadas. ;Teoricamente, tenho uma jornada de trabalho estabelecida, mas fiz algumas horas extras que não foram pagas. Prefiro não falar com os patrões, não gosto de cobrar;, afirma. Marilene sempre trabalhou como doméstica, mas revela que, às vezes, pensa em se tornar diarista. ;É uma escolha difícil. Considero mudar de grupo, pois poderia passar mais tempo em casa, talvez pudesse deixar de trabalhar aos sábados. Só que, depois, eu me lembro de que a legislação não me garantiria nenhum direito caso eu precisasse recolher o FGTS ou de auxílio por um acidente de trabalho, por exemplo;, explica. ;Trabalho das 8h às 17h até aos sábados, por causa disso, não concretizo alguns sonhos antigos, como o de iniciar uma faculdade de enfermagem;, desabafa. ;Por enquanto, permaneço como estou mesmo;, conta.

A maranhense Nazaré Rocha, 46, começou a trabalhar como doméstica aos 12 anos. Aos 27, se inscreveu em uma agência de empregos e recebeu uma proposta de um empregador de Brasília. Ela passou 11 meses atuando numa casa no Lago Sul ; uma experiência negativa. ;Eu me submeti a péssimas condições durante o período que estive lá. Trabalhava durante a semana e dormia na casa. Nunca recebi hora extra, mesmo tendo dias nos quais ia dormir às 3h da manhã, levantava às 5h e o patrão achava normal;, comenta. ;Quando esse meu primeiro empregador me demitiu, não pagou nada, pois disse que quem trabalhou por 11 meses não tem direito a nada, não;, relata. ;Na época, eu não quis esquentar a cabeça com isso, mas sei que ele estava errado;, continua.

diminuiu a remuneração para cobrir despesas, como FGTS;, conta. ;Nossa profissão é muito desvalorizada, mas, se for analisar, merecia muito mais reconhecimento. Além de executar os serviços com muita cautela, nós temos que adivinhar os gostos do patrão, pensar em como satisfazê-lo diariamente. Durmo pensando no que vou fazer para agradar no dia seguinte;, comenta.

Apoio sindical

Samara Nunes, diretora do Sintrado/DF, considera que muitas mulheres buscam a entidade para procurar ajuda. ;No sindicato, atendemos muitas domésticas que saíram do emprego, não receberam aquilo que deviam e o patrão se recusa a pagar;, continua. Ela garante apoio por parte da organização para quem precisar, tendo carteira assinada ou não, sendo filiado ao sindicato ou não. Porém, reforça a importância de regularizar o trabalho. ;Algumas acham que, quando assinarem carteira, perderão benefícios sociais, como Bolsa Família. Outras se mantêm nessa situação por medo de perder a renda;, diz.

A diretora pede que os próprios trabalhadores passem a valorizar a profissão, cobrar direitos e cumprir deveres. ;Falta reconhecimento para a categoria e estabelecer isso na sociedade não é algo simples. Acredito que os próprios colaboradores podem ajudar nessa questão. Quando exigem que o empregador siga a lei, evitam prostituir o trabalho e auxiliam na educação dos outros em relação a essa profissão;, declara. ;A PEC é um caminho para chegar ao nível desejado, no qual não teremos mais preconceito com a categoria, mas precisamos lutar para isso;, afirma.

Segundo Ricardo Vicente, professor da disciplina de processo e trabalho, do curso de direito do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), a PEC das Domésticas prevê direitos básicos de um trabalhador. ;O que essa emenda traz não é nada de excepcional. Essas pessoas são trabalhadoras como quaisquer outras e merecem ter reconhecimento e trabalho digno. Para isso que a PEC foi aprovada;, afirma. Ele considera que, antes, a categoria vivia em uma escravidão econômica, trabalhando em péssimas circunstâncias e sem garantias.


A crescente das diaristas


Essas trabalhadoras têm uma situação mais instável e precária, pois são remuneradas pelo dia de trabalho. Na maioria, estão à margem dos direitos associados ao trabalho e sujeitas a um ritmo mais intenso, uma vez que fazem em um ou dois dias a limpeza de toda a casa. Rejane Cardoso, 36, atua na área desde os 11 anos. ;Eu fazia isso por causa da família, a fim de ajudar meus pais a criarem meus dois irmãos mais novos;, afirma. Aos 15 anos, mudou-se do interior de Tocantins para Brasília com a família e, ao chegar, continuou nos serviços domésticos.

Ela teve experiências como mensalista, mas escolheu as faxinas por causa do horário. ;Posso escolher os dias em que quero trabalhar;, explica. Apesar dessa decisão, Rejane afirma que gostaria muito de ter carteira assinada. ;Na minha categoria, eu só tenho direitos se trabalhar três vezes na semana em uma mesma casa;, diz. ;Mesmo com esse desejo, eu não deixaria de ser diarista para me tornar doméstica, pois gosto de ter esse poder sobre meu horário. Espero conseguir uma diária de três vezes na semana para assinar a carteira;, comenta.

O professor Ricardo Vicente acredita que a crescente de diaristas se deve à crise no país. ;Cresceu o mercado por causa do custo de ter uma empregada. Muitas famílias não podem arcar com os custos previstos na PEC, coisas como férias, INSS e horas extras, pois os salários dos patrões não acompanham a inflação. Para quem trabalha apenas em alguns dias da semana, pagam só o transporte e o valor relativo ao trabalho do dia;, esclarece. ;Muitos empregadores demitiram quem trabalhava na casa todo dia como corte de gastos;, declara. Assim, muitos trabalhadores domésticos acabam trocando de grupo. ;Muitas se tornam diaristas não porque gostam, mas por causa da demanda do mercado. Fazem isso para se manterem ocupadas e garantir a renda para o mês;, explica. ;Na verdade, se for colocado na ponta do lápis, o custo de uma empregada e de alguém que trabalha apenas algumas vezes na semana pode chegar a ser o mesmo, mas o fato de não pagar os benefícios atrai os patrões;, observa.

Exclusividade quase feminina

Na maior parte dos casos, trata-se de mulheres. Tanto que a Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF) nem considera os homens ao fazer seus cálculos. A justificativa dos responsáveis pelo relatório é que eles, além de comporem uma parcela muito pequena dos trabalhadores domésticos, costumam exercer atividades com características diferentes das desempenhadas por elas, como as de motorista e jardineiro.

Data comemorativa


O Dia Nacional da Empregada Doméstica foi comemorado ontem (27), homenageando a morte de Santa Zita, uma italiana que trabalhou desde os 12 anos em casas de famílias da cidade de Lucca. Ela foi declarada a Santa das Empregadas Domésticas pelo apa Pio XII (1939-1958).

Palavra de especialista

Klaus de Melo, advogado formado pelo UniCeub e pós-graduado em direito trabalhista pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público)


Benefícios da formalização
; Primeiramente, a carteira assinada confere dignidade e reconhecimento ao trabalho exercido. Além disso, gera direitos formais e faz com que o empregador se preocupe mais em cumprir os deveres que lhe são cobrados. Em relação aos trabalhadores domésticos, dificilmente compensa não ter uma carteira assinada, pois é importante para essa categoria e todos os outros tipos de trabalhadores ter respaldo da Previdência caso seja necessário, em casos como gravidez ou acidente de trabalho. Domésticas que ainda não têm carteira assinada precisam conversar com o empregador e formalizar a situação o mais rápido possível. Além da Previdência, a aposentadoria também depende da regularização do trabalhador, pois só começa a contar o tempo de contribuição após a assinatura da carteira de trabalho.;

Três perguntas para

Givalci Azevedo, mestre em ciências políticas, cidadania e democracia pela Unieuro

Qual o impacto da criação e da aplicação da PEC?
É possível identificar que os empregados receberam mais visibilidade e passaram a ter voz e direitos, passaram a ser percebidos pela sociedade, apesar de haver muitos problemas ainda.

Existe um preconceito com esse tipo de trabalho?
Os próprios colaboradores têm uma rejeição à categoria. Eles têm vergonha de dizer que são profissionais domésticos, apesar de ser um trabalho justo e digno. Isso devido ao processo histórico que gerou essa profissão. Mas é preciso compreender que, em pleno século 21, não tem mais espaço para discriminação e a mudança também depende da postura que os empregados e os empregadores adotam em relação ao serviço.

Os trabalhadores são cientes dos direitos que têm?
Acredito que não. Por exemplo, se um empregado for demitido injustamente, é muito difícil que ele entre na Justiça contra o patrão por três motivos: desconhecer os direitos, ter preguiça de ir atrás de informação e laços afetivos criados com a família com a qual trabalhou. Porém acho que eles precisam separar as questões trabalhistas das afetivas. Tudo bem ter admiração e gratidão para com o empregador, mas se ele faltar com os deveres que lhe cabem, o empregado precisa buscar os direitos.


*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa