Trabalho e Formacao

Conheça histórias de pessoas que ganham a vida dirigindo táxi no DF

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 28/07/2019 04:08
Natal, 90 anos, é taxista há 45

Paixão pela profissão e pela capital

Aos 90 anos, Natal de Oliveira Fonseca passou metade da vida como taxista. São 45 anos de experiência com a área em Brasília. Ele passa o dia no ponto da Entrequadra 108/308 Sul, região que ele conhece de cor e salteado. ;Eu sei todos os detalhes dessa quadra e da outra. Tem loteria, farmácia, restaurante. Só tem que ter o dinheiro para gastar;, brinca. Para o aposentado, a profissão é uma forma de passar o tempo e completar a renda. Ele sentiu os impactos de aplicativos de transporte particular, como Uber, 99Pop e Cabify.

;Agora, eu estou chegando ao ponto às 9h. Antes, chegava aqui às 6h todos os dias. Agora, quase não tem demanda;, diz. ;Os apps acabaram com a gente. Você quase não vê mais táxis na rua;, completa. No entanto, ele nunca pensou em migrar para as novas plataformas. ;Você acaba com o carro, perde seu tempo... O governo come um pouco (do dinheiro), o aplicativo come o resto, e você fica feito bobo;, diz. ;Para trabalhar de graça, eu fico em casa mesmo.; Para muitos taxistas, a melhor forma de sobreviver no novo mercado é manter clientes fixos. No entanto, para Natal, essa não é mais uma opção.
;Eu tinha (clientes fixos), mas não quero mais. Quando chega o fim do mês, o pagamento não sai, pedem para esperar para o próximo. Eles enrolam a gente.; Levar cano de passageiros não é incomum para o aposentado. ;Um dia desses, entrou um cidadão aqui pedindo para eu levá-lo à Asa Norte;, lembra. ;Chegando lá, ele pegou um celular, deixou em cima do banco como garantia e disse que ia buscar o dinheiro para me pagar. Ele desceu e foi embora. Quando eu vi, no lugar do celular estava só a capa;, conta, rindo. Natal chegou à capital federal na década de 1960 em busca de melhores condições de vida. Antes, morava em Uberlândia, onde era caminhoneiro.

;Você começa a trabalhar e vai pegando cada porcaria na vida. Eu só trabalhava com caminhão velho. E era para viajar para o Rio de Janeiro e para São Paulo. Então, cansei dessa vida;, explica. ;Quando surgiu Brasília, decidi tentar melhores condições na cidade. E aqui estou até hoje. Aqui me deu vida. Lá não dava;, analisa. Na capital, ele decidiu continuar trabalhando como motorista, mas, desta vez, de táxi. Natal conta que se apaixonou pela cidade, onde se casou e teve oito filhos. Ele não pretende mais deixá-la. ;Daqui, só para o Campo da Esperança.;

Mulher na direção

Jozi Felix, 37, escolheu como profissão um ofício exercido predominantemente por homens: o de motorista de táxi. Ela conta que, no começo, foi difícil, mas, com o tempo, conquistou seu espaço. ;No início, os caras achavam que eu estava dando mole para eles. Principalmente porque eu sorrio e converso com todo mundo;, diz. ;Hoje, as pessoas sabem que é meu jeito e eu ganhei meu espaço no meio de todos. Já viajei para outros estados a convite de sindicatos para representar a categoria. Eu brigo pela causa;, diz.

Antes de ser motorista, Jozi era uma passageira regular do táxi. Inclusive, foi uma das corridas no transporte que a motivou a escolher a profissão. ;Depois do trabalho, eu pegava o ônibus da Rodoviária do Plano Piloto para o Gama e, de lá, pegava um táxi para a minha casa. Dava R$ 15, achava pouquinho;, calcula. ;Teve um dia em que o ônibus não passou, aí eu peguei um táxi do Plano até minha casa e a corrida deu R$ 140;, conta. ;Eu não acreditei que o motorista tinha ganhado R$ 140 meus em menos de 40 minutos;, relata.

;Comecei a pesquisar e ver com motoristas como era a profissão. Nenhum dos que eu conversei ganhava menos do que R$ 10 mil por mês. Pensei: gente, vou ser taxista;, afirma. A taxista assumiu o ofício há cinco anos, na mesma época em que os aplicativos começavam a chegar ao Brasil. Mas Jozi afirma que, no caso dela, eles não atrapalham tanto, porque ela tem clientes fixos. ;Tenho uma clientela muito grande de meninas e costumo levar crianças para a escola. Também transporto muitos deputados;, comenta.

A motorista diz que sempre negocia descontos e preza por um atendimento de qualidade. ;Antes de ser taxista, eu era passageira, então eu sempre me coloco no lugar do outro. Acho que a gente deve atender do jeito que gostaria de ser atendido. Se você é bem atendido, vai falar bem daquele serviço.; Jozi tem uma rotina puxada. Faz curso de tecnólogo em eventos de manhã no Instituto Federal de Brasília (IFB) e trabalha à tarde e à noite como taxista. Mas ela conta que ama a profissão. ;Esse foi meu melhor trabalho. A profissão que eu mais gostei e que me deu o melhor salário, mesmo com os aplicativos;, diz.

;Claro que o número de corridas diminuiu bastante. Eu nunca cheguei a tirar R$ 10 mil, mas nunca tiro menos que R$ 5 mil por mês;, completa. Para ela, a melhor parte do ofício é conhecer os passageiros. ;A gente escuta muitas histórias. Todos os dias conhecemos pessoas e lugares diferentes.; Até pedido para seguir outro carro a motorista já recebeu. ;Uma vez uma moça pediu para eu levá-la à concessionária onde o namorado trabalhava, porque ele não a atendia havia três dias, e ela disse que estava preocupada. Chegando lá, a mulher pediu para eu ligar para o estabelecimento fingindo ser cliente para saber se ele estava trabalhando ou não;, conta.

;Aí ele atendeu o telefone, e eu falei que tinha interesse em trocar de carro. Perguntei se ele usava a própria marca, e ele me respondeu: ;Uso sim, eu e a minha esposa;. O telefone estava no viva-voz. Quando ele disse isso,
olhei para a cara da mulher pelo retrovisor e fiquei muito sem graça;, admite. ;Ela fingiu que nem tinha ouvido. Quando o namorado dela saiu de lá, ela pediu para eu seguir o carro dele. Era meu sonho alguém falar isso.;

Comodidade e presteza

;Eu amo minha profissão. É um leque de experiências. Nós transportamos pessoas de várias culturas, de vários segmentos. Sempre aprendemos um pouco com cada passageiro e também passamos um pouco da nossa história para eles;, conta o taxista Leandro de Almeida Soares, 33 anos, sobre a própria profissão. O goiano mora em Brasília desde 2001 e atua na área há uma década. Antes, ele foi motorista de van. ;Eu sempre quis trabalhar com transporte. Tinha amigos que trabalhavam como taxista e me fizeram o convite, porque era muito bom e rentável;, diz. Leandro é o tipo de motorista que adora conversar com os passageiros. ;Às vezes, as pessoas precisam do diálogo, em vez de ficarem presas somente à tecnologia. A conversa ali, muitas vezes, faz toda a diferença no dia.;

Foi assim que ele conquistou clientes fixos que manteve por anos. ;Tenho muitos passageiros antigos. Eu transportava os filhos de um cliente para o Maristinha, e hoje eles estão na faculdade;, conta. Para concorrer com os motoristas de aplicativos, o goiano aposta no bom atendimento e na conservação do automóvel. ;Se você olhar os pontos de táxi, você não vê carros em mau estado, carros com mais de três anos de uso. A frota está sendo renovada. Se você andar de táxi, vai observar que os carros são limpinhos e novos. Esse é o primeiro ponto;, destaca. ;O segundo é o atendimento, é ser prestativo e cuidadoso com o cliente. O passageiro que pega táxi não está preocupado com preço, ele quer um bom serviço;, completa. De acordo com Leandro, o táxi não faz só corridas.

;Às vezes, a gente presta um socorro. Quando seu combustível acaba, a gente tem um reservatório para encher. Às vezes, o carro está sem bateria, e a gente faz uma chupeta;, exemplifica. Ele recorda da vez em que uma passageira entrou no táxi chorando porque o automóvel tinha quebrado, e ela estava sem locomoção. ;Eu identifiquei que o problema era falta de bateria e disse para ela que tinha um cabo de chupeta e que a gente poderia resolver;, relata. ;Depois, fui até a loja de bateria com ela. A moça ficou muito agradecida ;, afirma. ;Esse episódio me marcou.; O número de corridas que o goiano faz diminuiu muito após o advento das plataformas digitais de transporte.

;Hoje, em um dia bom, faço entre oito e 12 corridas. Antes, eu tinha uma média diária de 32;, compara. Desde junho de 2014, Leandro a estima que houve uma diminuição de mais de 60% na remuneração dos taxistas. No entanto, ele conta que, aos poucos, os profissionais estão recuperando a clientela. ;Muitos passageiros que nós perdemos estão voltando para o táxi. Sabemos os melhores caminhos, referências, rotas, lugares.; A paixão de Leandro pelo trabalho influenciou o enteado, que ele considera como filho, a escolher a mesma profissão. ;Por enquanto, a função do João Marcelo é apenas estudar, mas ele já decidiu que quer ser taxista;, conta o motorista. O rapaz tem 20 anos e cursa o ensino médio em uma escola em São Sebastião.

Segunda casa

A autonomia que a profissão proporciona motivou Aldo da Silva, 53, a ser taxista. ;No táxi, a gente faz a hora da gente, por mais que trabalhe bastante;, diz. ;Eu gosto muito de liberdade... Gosto de ficar dirigindo por aí, de trabalhar na rua. Já fiquei até uma semana fora.; Na maior parte do tempo, o motorista trabalha no Aeroporto Internacional de Brasília ; Presidente Juscelino Kubitschek, que se tornou uma segunda casa para ele. ;Aqui a gente chega, faz caminhada, assiste à televisão, toma banho... No antigo ponto de apoio para taxistas, tinha até campo de futebol e academia;, conta.

;Todo taxista que vive só disso precisa ficar mais tempo na rua para fazer mais corridas. É igual caminhoneiro. Os que moram perto, normalmente, vão para casa todos os dias, mas os que moram longe ficam dois ou três dias fora. A vida do taxista é assim.; De acordo com o motorista, nos últimos anos, a movimentação do táxi diminuiu muito devido à crise econômica e à concorrência com as plataformas digitais. Para ele, a competição com os aplicativos é desleal. ;Aqui no DF, e acredito que em outros lugares também, não há fiscalização para o Uber, mesmo que seja lei;, pondera.

;Enquanto isso, no caso do táxi, olham pneu, documentação do automóvel, documentação do motorista;; Ainda de acordo com Aldo, a falta de fiscalização prejudica a categoria de motoristas como um todo. ;A gente não tem nada contra quem trabalha com os aplicativos, principalmente porque o desemprego está grande. O que a gente quer é que o governo fiscalize as plataformas, porque todos os motoristas são prejudicados;, diz.

Palavra de especialista

Uberização do trabalho

;Os aplicativos trouxeram uma profunda precarização do trabalho. É claro que, se eu sou desempregado e tenho um carro ou posso alugar um, a filiação a um desses aplicativos é melhor que o desemprego. Então esse é o primeiro ponto. É o avanço que significa para quem não tem trabalho. Agora, essas plataformas digitais ; e não é por acaso que se fala mundialmente em ;uberização; do trabalho ; representam uma forma de esconder a relação de assalariamento que existe, criando a figura mistificada de um prestador de serviços. Então, o que as plataformas de transporte vão dizer é que conectam o dono do veículo e um consumidor.

Mas aí eu pergunto: por que tem um algoritmo que controla tudo que o motorista faz? Porque ele é avaliado a cada corrida? Por que, se ele não atender três chamadas, ele corre o risco de perder esse vínculo? Mas aí a empresa vai dizer que ele trabalha na hora que quer. Claro. Ele pode trabalhar duas horas por dia, pode trabalhar no fim de semana ou pode trabalhar toda a noite. Mas, quando está trabalhando, ele está sob controle e avaliação da empresa. As plataformas digitais são empresas corporativas globais. Muitas delas estão no ranking das empresas mais valiosas do mundo. Isso significa que elas criam um modus operandi onde os direitos trabalhistas são burlados sob a aparência de que não há relação contratual de trabalho.;

Ricardo Antunes, professor titular de sociologia no Instituto de ilosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de ampinas (Unicamp), graduado em administração pública pela Fundação Getulio Vargas
(FGV-SP), mestre em ciência política pela Unicamp e doutor em sociologia pela Universidade
de São Paulo (USP)

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