Trabalho e Formacao

Conheça histórias de profissionais pretos que superaram as barreiras do preconceito

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 17/11/2019 04:17
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Empresários
Heitor Perpétuo, 36, e Cleide Rodrigues, 56, se conheceram por meio de amigos em comum e, juntos, montaram um restaurante italiano ; o Sambistrô, localizado no Cruzeiro Velho. Ela cuida da cozinha, ele é responsável pela administração e comunicação do estabelecimento.

Cleide conta que é apaixonada por culinária e fez diversos cursos de gastronomia na Europa, onde morou por cerca de 30 anos. ;Não fiz faculdade, porque não é necessário. Você tem que fazer o que gosta;, diz. ;Eu amo meu trabalho, é meu prazer, minha vida, e agradeço a Deus pelo que ele me deu;, acrescenta.

A carioca, que estudou em colégio militar e fala cinco idiomas, passou pela Inglaterra, Itália e Espanha, onde fincou raízes. Há cerca de três anos, ela se mudou para Brasília e começou a trabalhar em casa preparando comidas veganas, vegetarianas e fitness. Mas não estava plenamente satisfeita, pois sempre gostou mesmo da gastronomia espanhola e italiana.

Foi aí que ela conheceu Heitor, um publicitário que tinha uma loja fechada em um centro comercial e queria abrir um estabelecimento que reunisse música e gastronomia. Da coincidência de objetivos, nasceu o Sambistrô, que, posteriormente, migrou para o Cruzeiro Velho.

Além de administrar o restaurante, Heitor trabalha em uma agência de publicidade. De acordo com ele, faltam tanto empresários quanto publicitários negros no mercado. ;Eu me vejo como um dos poucos (negros) nos dois setores;, afirma. ;Não sinto necessariamente um preconceito. Acho que não dou muita atenção a isso, que, na minha opinião, é mediocridade intelectual;, completa.

;Mas o que eu percebo e me causa estranhamento é a pouca quantidade de negros, principalmente em restaurantes caros e escolas particulares.; Na opinião dele, é fundamental que jovens negros tenham referências de empresários como forma de incentivo. ;Nós temos alguma representação na arte, na cultura e no esporte, mas nossa representatividade nos pilares da sociedade, que são a economia e a política, ainda é muito fraca;, opina.

Cleida também não se sente discriminada no trabalho por ser negra. ;Eu sempre fui muito valorizada pelo que sou, pela minha trajetória, por todo meu trabalho e empenho;, relata. ;Não senti nenhuma reação, a não ser de dois ou três que chegam aqui e me olham meio diferente, mas é a minoria. Não tenho problema nenhum quanto a isso.; Orgulhosa, ela conta que foi a primeira chefe de cozinha negra em Palma de Mallorca, na Espanha, e sua irmã, a primeira marinheira negra na mesma cidade.

Pluralidade
Jornalista de formação, Fabiana Reis, 38, criou um projeto para ;mudar o foco da questão negra; ; o Black Me. Ela produz bolsas com artes inspiradas em mulheres negras urbanas e comercializa em salões afro, feiras e na rodoviária do Plano Piloto. O objetivo, entretanto, não é lucrar, mas expor a beleza afro.

;Na maioria das vezes, quando você ouve falar da questão negra, você ouve falar da escravidão, dos movimentos sociais e da nossa luta;, diz. ;A ideia do projeto é focar na questão do existencialismo. Somos negros, temos hobbies, temos vontades na vida e somos pessoas como outras quaisquer. Não somos apenas a nossa cor;, completa.

Além de ter atuado como jornalista, Fabiana já foi chefe de cozinha e, depois da maternidade, decidiu trabalhar em algo mais ;light;. Foi aí que surgiu a ideia das bolsas. Ela conta que, por ser uma mulher negra, teve que fazer ;um caminho completamente diferente; para chegar onde está hoje.

;Não deveriam todas as pessoas ter oportunidades no mercado de trabalho?;, questiona. De acordo com a brasiliense, quando era mais jovem, ela não tinha tantas figuras negras em quem se inspirar. ;Em absolutamente todos os lugares, só havia mulheres brancas e de cabelo liso...;, relata. ;Está na hora de a gente estampar nossa cara.;

Sucesso pelos estudos

A dentista Thayene Oliveira, 31 anos, se descreve como uma mulher negra empreendedora. Brasiliense, é formada em odontologia pela Universidade de Brasília (UnB). Thayene conta que os pais tiveram uma origem muito pobre, mas que mudaram de vida por meio da educação.

;Meu pai foi guardador de carro e minha mãe foi caixa de padaria, mas sempre tiveram uma coisa muito forte de que o estudo os tiraria daquela situação. Lutaram muito para poder reverter as circunstâncias na qual viviam;, conta. A recompensa por todos os anos de dedicação veio quando Thayene e a irmã Rayane de Oliveira Carvalho passaram na universidade.

Para Thayene, a experiência na graduação foi bastante solitária. ;Infelizmente, tive poucos colegas negros durante o curso, senti muita falta desse pertencimento, de ter a minha galera, que se parece comigo. Os cursos na área da saúde são majoritariamente preenchidos por pessoas brancas;, explica.

Após concluir a faculdade, ela decidiu colocar em prática o sonho que compartilhava com o pai de ter a própria clínica. ;Foi um combinado que nós dois fizemos, eu passaria para odonto e ele, para administração, assim abriríamos o consultório. No entanto, no meio da graduação, meu pai faleceu. Por isso, deixei a ideia um pouco de lado;, lamenta. Depois de ter passado pelo luto, Thayene resolveu retomar a ideia e, em janeiro de 2018, abriu as portas do consultório, que leva o seu nome.

Ela compartilha os desafios e preconceitos que enfrenta por ser uma dentista negra que é dona do negócio. ;Comecei a vivenciar mais a discriminação quando abri a clínica. Percebi nos rostos das pessoas que, quando chegavam para ser atendidas, se espantavam ao ver que eu as atenderia. Chegou ao ponto de perguntarem se eu realmente trabalho aqui;.
Thayene diz se sentir realizada quando atende clientes negros. ;Fico muito feliz quando alguém vem me procurar por se identificar, pelo fato de sermos iguais. É uma sensação de conexão, sinto que flui mais fácil, me tira um pouco desse receio, porque sei que ele está me vendo como igual;, reflete.

Dia da consciência negra

A importância da data para a história do país
Em 20 de novembro de 1695, morreu Zumbi dos Palmares, um dos maiores símbolos brasileiros da luta e resistência do povo negro. Por conta desse acontecimento, em 2011, foi sancionada a Lei n; 12.519, que institui o Dia Nacional da Consciência Negra. A data é reservada para refletir sobre a história da população negra no Brasil. Do passado aos dias atuais.

Vale lembrar que o Brasil foi a última nação a abolir a escravidão na América Latina, em 13 de maio de 1888. No entanto, a luta por liberdade, melhor condição de vida e pelos direitos mínimos continua através das diversas figuras públicas representantes da causa, das organizações sociais e das pessoas anônimas que, dia a dia, tentam vencer as barreiras do acismo.

Palavra de especialista

A barreira do racismo

A principal dificuldade para a inclusão de negros no mercado de trabalho deveria ser qualificação, mas não é. A gente tem, obviamente, uma dificuldade muito grande no processo de formação, porque as pessoas negras, em função das circunstâncias econômicas, muitas vezes têm de trabalhar como arrimo de família e isso torna precoce a evasão escolar. Mas essa é uma parte da história, não tudo.
Mesmo quando a gente fala das pessoas que são qualificadas, você encontra a barreira do racismo no mercado de trabalho. Muitos empregadores estão ainda contaminados pelo mito da ;boa aparência;. Eu me lembro de quando era muito jovem e ia procurar emprego nos classificados. Às vezes, eu tinha todas as condições para pleitear o cargo, mas não tinha a tal da ;boa aparência.; E o que é a boa aparência? No fim das contas, é ser branco.
As empresas, muitas vezes, estão mais preocupadas com a imposição de um padrão eurocêntrico do que necessariamente em empregar a pessoa que está mais capacitada. Em muitas seleções, o indivíduo mais qualificado é negro e não terá um emprego em função da discriminação racial, em função do racismo que permeia as relações entre empregador e empregado.
Nelson Fernando Inocêncio da Silva - bacharel e mestre em comunicação e doutor em arte pela UnB, professor adjunto no Departamento de Artes Visuais da UnB e ex-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros

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