Trabalho e Formacao

Na passarela: a diversidade

Indígenas, negros, brancos, refugiados, mulheres em situação de vulnerabilidade, LGBTQI, pessoas com deficiência, plus size... Segunda edição de evento de moda brasiliense reúne os mais diversos perfis, tendo como grande lema a inclusão

postado em 08/12/2019 04:18
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Três dias e 34 desfiles para ajudar a diminuir o índice de suicídio de uma tribo indígena, incentivar e empoderar índias, pessoas com deficiência, LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer e Intersexuais) e refugiados, além de revitalizar o mercado da moda no DF. Essa foi a proposta da segunda edição do Brasília Trends Fashion Week, evento que terminou no último domingo (1;) e reuniu cerca de 8 mil pessoas no Centro de Dança do Distrito Federal, localizado no Setor de Autarquias Norte. De forma direta e indireta, a programação gerou 400 empregos. A equipe de organização tinha, entre seus integrantes, cadeirantes, cegos e trans.

A sexta, o sábado e o domingo foram marcados por desfiles de pessoas LGBTQI e com deficiência visual, síndrome de down, além de modelos plus size. O público também conferiu palestras sobre temas como ;A influência da estética pessoal na autoestima, na automotivação e no bem-estar;, ;Atendimento voltado para os mercados invisíveis;, ;Mulheres do século 21;, entre outros. ;Você olha para os looks e tem uma história por trás. Mulheres em vulnerabilidade costuraram, índias pintaram... No fim, todas se sentiram empoderadas;, comenta Bernardeth Martins sobre o desfile Guajajara. Ela e Lorraine Bonadio são as organizadoras da semana de moda.

A inclusão e o incentivo a artistas locais marcou a abertura, com um desfile especial para convidados. O cantor escolhido para dar o tom do momento foi o brasiliense Wellington Abreu, 34 anos. ;O convidamos pensando na inclusão. Imagine a dificuldade que é conseguir uma oportunidade para se destacar. Conseguir um espaço nesse mundo da música não é fácil;, pontua Bernardeth, diretora administrativa do Sindivarejista (Sindicato do Comércio Varejista do Distrito Federal) e proprietária da loja de roupas Cirandinha.

;Muitas empresas chamam o meu grupo musical, W.A. Music Entertainment, para casting, mas nem sempre nós, negros, somos aceitos e escolhidos. Existe um certo padrão no qual nós não estamos incluídos;, percebe Wellington. Além disso, ele acredita que Brasília desvaloriza artistas locais. ;Quem é de fora pode ganhar, em uma noite, R$ 20 mil,mas quando as casas de evento vão contratar a gente, querem pagar R$ 200 ou R$ 300;, relata. O objetivo de Wellington, que começou a cantar aos 7 anos e, profissionalmente, aos 10, é quebrar tabus e democratizar a música. ;Aqui, na capital federal, temos talentos maravilhosos. O que falta é oportunidade. Por causa da cor e de outros aspectos, somos desvalorizados e nos prejudicamos.;

Potencial indígena
O desfile Guajajara foi a realização de um sonho da indigenista e ambientalista Ludmilla Leão, 45. ;Eu queria fazer um projeto para incentivar as índias e empoderá-las;, afirma. Por isso, juntou-se a Bernardeth para correr atrás das parcerias necessárias para tirar o projeto do papel. ;Queremos mostrar nosso potencial como indígena e acabar com o preconceito. Com esse desfile, vamos resgatar muitos jovens que tentam se suicidar. Vamos mostrar que eles podem estar no meio da cidade;, explica Kaiana Guajajara, 27, de Barra do Corda (MA).

O estilista Diego Rocha, 29, se sentiu honrado quando recebeu o convite para desenhar as peças. ;Gosto de ter referência brasileira. Tem gente que busca no exterior, mas acho que aqui, no Brasil, temos muitos elementos inspiradores;, afirma. Para criar os looks, ele enviou os tecidos brancos para as índias, no Maranhão, para que elas pintassem as telas. Inspirado pelas formas geométricas pintadas, Diego, que trabalha há mais de 10 anos no mercado da moda, desenhou vestidos com cores e traços inovadores. As peças foram costuradas por integrantes da Escola de Moda e Negócios Fashion Campus e pela Fábrica Social, projeto que gera emprego para pessoas em vulnerabilidade social.

O resultado desse trabalho em equipe foram peças modernas e sensuais. ;Até as mulheres que não gostam da pegada indígena vão adorar a coleção;, aposta. No total, foram produzidas 10 composições na coleção Guajajara. E o objetivo não é parar por aí. ;Vamos fazer uma marca para vender as roupas;, anuncia Diego. Para comercializar as mercadorias, algumas peças deverão ser repensadas, pois demandam muitas horas de trabalho, o que, segundo ele, elevaria os preços.

Inclusão de todos os tipos
Valeria Cardoso Correio, 49, é cadeirante e integra o staff de recepção e apoio do Brasília Trends Fashion Week. Mãe de dois filhos, ela sustenta sozinha a casa da família, no Riacho Fundo. A mobilidade reduzida dificulta a empregabilidade. ;Quando soube que teria uma chance de trabalhar no evento, fiquei tão emocionada que quase cai da cadeira;, brinca. Ela acredita que quase todas as pessoas com deficiência lidam com algum grau de depressão. Por isso, uma oportunidade de trabalho ganha outro significado para além do sustento: é uma porta para o convívio com outros, o que favorece a saúde mental.


;Sinto alegria de trabalhar e poder levar algo para dentro de casa;, comemora Valeria. Outros colegas e integrantes da organização também tinham deficiência. Ernandes Feitosa, 42, que é cego, por exemplo, foi contratado para abraçar os presentes. Ele ganhou o título de Mister DF Inclusivo 2019, pela diretoria da Fashion Inclusive. Quando chamado para o cargo no evento de moda, ficou surpreso. ;Gostei muito. Foi um aprendizado muito grande, conheci muitas pessoas;, diz Ernandes. Bernardeth acredita que o abraço de um cego é diferente: ;Você recebe muito mais energia. Se você está triste, sente um alívio;.

A inclusão era mote tanto para quem trabalhou quanto para quem visitou o evento. O segurança Ivan Macário, 49, é intérprete de libras. Contratar alguém que entende a Língua Brasileira de Sinais, como ele, é importante para promover a interação entre todas as pessoas. ;Assim, se algum surdo quiser saber onde fica o banheiro ou outro tipo de informação, estou pronto para responder. A gente consegue integrar as pessoas ao evento;, observa. Os trabalhadores também tinham a liberdade de ser como são, como expõe a integrante do staff de recepção e apoio Flávia Souza, 39.

Ela conta que, geralmente, as organizações de eventos pedem que ela alise o cabelo para trabalhar. ;Só que eu gosto do meu cabelo à mostra. Quando me contrataram e informaram que eu poderia ficar à vontade, nem acreditei. Aqui eu posso ser quem eu sou. Negra, do cabelo crespo;, celebra. A chance de emprego temporário também foi comemorada. ;Como negra, eu vejo a falta de oportunidade no mercado de trabalho. Não contratam a gente.;

Respeito
O Brasília Trends Fashion Week empregou refugiados de vários países na recepção e na passarela do evento. ;Queremos mostrar que o mundo tem que ter respeito;, defende Bernardeth Martins. Desse modo, houve venezuelanos na recepção, modelos haitianos desfilando e uma coleção de estilistas africanos sendo exposta na passarela. Natural da Costa do Marfim, Dja Franck Lagbre é um dos cinco estilistas que compõem a marca Egalité ; todos compartilham a condição de refugiados vindos de países da África, além da criatividade.

Ele trabalha com moda há 21 anos. Chegou ao Brasil em 2017 e foi explorado por uma fábrica brasiliense que tem dívidas financeiras com ele até hoje. ;Eu me senti honrado com o convite do Brasília Trends. A moda é a nossa vida. E pudemos mostrar que não são só os africanos que podem vestir a moda de lá, porque moda é universal;, comemora o estilista. Na marca Egalité, refugiados africanos costuram as roupas que eles mesmos desenharam. O ponto de venda fica no Venâncio Shopping (saiba mais no Instagram @egaliteboutique).

Beleza haitiana
Roberson Michel, 29, é haitiano e um dos modelos a desfilar no Brasília Fashion Trends Week. Encontrou refúgio no Brasil em 2015. Buscou emprego por quatro meses até ser contratado como garçom em um bar em São Sebastião, onde morava na época. Como negro, prefere ignorar o preconceito. ;Não ligo, deixo passar. Isso existe em qualquer lugar do mundo;, diz.

Há dois anos, Roberson trabalha na agência 3 Models, em Águas Claras, mas não consegue viver apenas disso. ;Em Brasília, o mercado da moda é muito devagar. Acontece um evento a cada três ou quatro meses;, enfatiza. Por isso, ele completa a renda como garçom em festas. Como homem, negro e refugiado, ele acredita que a cor não influencia na sua carreira. ;Na maioria dos castings que eu fiz, fui escolhido;, comemora.

Diversidade
;Moda não é só o que vem da Europa;, defende a brasiliense Wizy Marques, 25. Ela é modelo há oito anos e elogia a iniciativa do Brasília Trends Fashion Week, voltada à diversidade, dando visibilidade a outros estilos. A estudante de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) considera que o evento brasiliense veio para mudar a realidade fashion na capital federal. Como modelo e universitária, cursando o último semestre da graduação, ela se sente grata com o convite para desfilar no evento. ;É uma honra, pois estou representando as meninas que gostariam de estar aqui;, comemora. O que Wizy ganha como modelo não é suficiente para pagar todas as contas por enquanto. Então, ela procura renda extra, trabalhando como recepcionista em casas noturnas e eventos.

Um evento que veio para ficar
Organizadora do evento, Lorraine Bonadio conta que a segunda edição do Brasília Trends Fashion Week superou todas as expectativas. ;Foi lindo e incrível. Conseguimos alcançar os objetivos, que eram trazer a ideia da inclusão com força total e mostrar para o mundo que todos têm beleza, força e espaço;, comemora. Ela atua no mercado da moda há mais de 10 anos, com agenciamento e produção de eventos, sendo responsável pela Week Produções, agência de modelos kids e teens.

A organizadora conta que, no início, em uma das tantas reuniões de planejamento, percebeu que o projeto era maior do que o imaginado, mas isso não impediu a realização dele. ;Quando olhamos para o papel, nos assustamos. Queríamos criar um projeto para apresentar a moda de Brasília e, de repente, veio um mundo fashion. Ficamos um pouco preocupadas, tentamos reduzir e já não dava mais. O evento já era muito grande no nosso coração;, diz. Em meio a dificuldades, as organizadoras conseguiram captar 90 empresas que participaram da primeira edição como patrocinadores, apoiadores ou marcas.

;Ano passado, o evento foi maravilhoso, abriu portas. Foi a chance de tirar um sonho do papel e fazer com que tudo aquilo, que era tão grande, se tornasse realidade, mesmo não sendo tão fácil;, reflete Lorraine. As organizadoras aprenderam com os erros e receberam elogios de expositores, palestrantes e visitantes. Orgulhosa, Lorraine dá um spoiler sobre o Brasília Trends 2020: "Vamos procurar um espaço maior, que caiba todo o nosso público, e com bastante ar condicionado;.

*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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