Exceção na tribuna
Filha de uma empregada doméstica e de um marceneiro, Silvia Souza, 36 anos, foi a primeira da família a cursar o ensino superior. A advogada, que estudou direito na Universidade Paulista (Unip) com uma bolsa integral pelo Programa Universidade para Todos (ProUni), conta que sempre cultivou o sonho de fazer uma faculdade, graças ao incentivo de um professor da escola. “Ele foi a pessoa que disse que eu poderia ser o que eu quisesse”, lembra.
“Em casa, não tinha tanto incentivo, porque não era uma realidade palpável para mim.” Silvia cresceu em uma região periférica de São Paulo. Até acesso a ônibus era complicado. “Quando chovia, eles não chegavam perto da minha casa, porque era uma estrada de terra”, conta. A escolha do curso veio a partir da própria experiência de vida. Como estudante, ela queria entender os próprios direitos para poder reivindicá-los.
Desde que começou a advogar, Silvia se envolveu na militância negra e se interessou por temas ligados aos direitos humanos.
Até o ano passado, trabalhava como assessora jurídica da ONG Conectas, que luta pela defesa das populações mais vulneráveis. Um momento marcante da carreira foi quando fez a primeira sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), em 17 de outubro do ano passado. Tratava-se de um julgamento sobre prisão em segunda instância. Na ocasião, defendeu que a população mais afetada por essa pena são negros, pobres e periféricos. A advogada descobriu que participaria da sessão na noite anterior, quando recebeu uma ligação da ONG.
“A ficha só caiu quando eu cheguei sozinha ao STF”, diz. “Foi muito marcante, porque eu olhei para o plenário e ele estava lotado. Muitas pessoas foram assistir, mas só tinham quatro ou cinco negros.” Ela foi a única mulher e a única negra a se manifestar na tribuna na ocasião. “Isso é um retrato do poder judiciário, majoritariamente branco e masculino”, aponta. “Inclusive, muitas pessoas me reconhecem como a primeira mulher negra a fazer uma sustentação oral no STF. Não tenho certeza (dessa informação) e espero que não seja verdade. Espero que isso não tenha acontecido somente em 2019”, acrescenta.
Silvia conta que muitas estudantes e advogadas se sentiram encorajadas com o exemplo dela. “Agora, se isso vai abrir portas, não sei. As oportunidades ainda estão concentradas na mão de uma elite majoritariamente branca e masculina”, lamenta. Este ano, ela foi convidada para trabalhar na coordenação adjunta da equipe legislativa do deputado distrital Fábio Félix (Psol), na Câmara Legislativa do Distrito Federal, e se mudou para Brasília.
Uma história disruptiva o mundo dos negócios
Aos 35 anos, Juliana Guimarães tem uma bela carreira construída como executiva. Formada em comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP) e pós-graduada em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral, ela chegou a ser diretora de uma multinacional antes dos 30 anos. “Eu tive a oportunidade de viajar o mundo todo, foram experiências incríveis”, lembra.
No entanto, ela não estava satisfeita com o trabalho. “Por mais que eu chegasse lá superjovem com meu all star para viajar como executiva, eu vivia infeliz”. Ela afirma que não conseguia se adaptar ao discurso das empresas de “querer transformar o mercado” enquanto fazem tudo sempre da mesma maneira, com as mesmas burocracias. “Foi aí que meu marido, Fernando, que sempre foi empreendedor, me deu um chacoalhão. Ele me disse: se você não concorda com isso, está na hora de utilizar todas essas suas habilidades e criar um ambiente para você”, lembra.
Na época, os dois moravam em São Paulo. Ele a convidou para ser sócia em um coworking de nicho jurídico que estava planejando abrir em Brasília, cidade natal de Juliana. “Naquele momento, eu estava tão desesperada que nem me toquei dos riscos que estavam envolvidos nessa empreitada. Eu voltaria para a cidade de onde tinha saído 15 anos antes e ainda seria sócia do meu marido”, recorda. “Morria de medo todos os dias, porque eu não sabia como seria. Além disso, eu tinha uma certa desconexão com Brasília.” Apesar dos receios, alguns meses depois, eles desembarcaram na capital federal.
Mudança de rota
O coworking, chamado 4Legal, começou a crescer. “Decidimos ampliar o negócio para atender empresas de diferentes segmentos. Depois de nove meses, estávamos atendendo multinacionais, como a Uber”, relembra a empresária. Os resultados positivos do 4Legal levaram Juliana e Fernando a investirem em outros empreendimentos. Eles inauguraram a primeira anticafeteria de Brasília (espaço onde os clientes pagam pelo tempo que passam lá, não pelo que consomem), além de iniciarem um programa de aceleração de empresas e um novo espaço de coworking no Lago Sul, chamado A Casa.
“Eu estava entrando em um mercado majoritariamente masculino. Não foram poucas as vezes em que eu fui para reuniões lançar projetos e todo mundo me perguntava onde estava o Fernando”, conta Juliana. “Uma vez eu fui atender uma empresa que tinha uma cultura extremamente machista e tive que levar meu estagiário. O então diretor de marketing da companhia só fazia as perguntas para ele.” Enquanto dirigia os negócios com o marido, Juliana ficou grávida do primeiro filho, João, 3 anos.
“Com quatro meses, o João estava indo fazer palestras, participava de reuniões e chegou até a ter uma sala no escritório para brincar com a babá enquanto a gente seguia os negócios”, relata a empresária. Cerca de um ano depois do nascimento de João, Juliana ficou grávida de Maria, 1 ano.
“O desafio era maior. Tínhamos duas crianças pequenas e precisávamos conciliar tempo, estrutura e prioridades”, lembra. “Eu brinco que passamos de fase no videogame da vida.” Ela conta que, em meio a tantos empreendimentos, estava difícil focar o que eles realmente sabiam e gostavam de fazer: gerar negócios, contribuindo para o crescimento de outras empresas.
Por isso, resolveram vender o 4Legal, A Casa e a anticafeteria. Atualmente, gerenciam o 55Lab, um laboratório de negócios que “conecta pessoas e consolida ferramentas para gerar empreendimentos e satisfação no trabalho”. Este ano, Juliana e Fernando lançarão o #ElasEmpreendem55, um programa voltado só para mulheres que querem melhorar resultado em suas empresas, começar um novo negócio ou se conectar com outras mulheres que atuam na mesma área.
Premiada no exterior
No começo deste ano, Liliane Rocha, 38 anos, recebeu, pelo segundo ano consecutivo, um prêmio pelo trabalho que desenvolve em prol da diversidade nas empresas. Trata-se do 101 Top Global Diversity&Inclusion, promovido pelo World HRD Congress, evento que reúne lideranças do mundo inteiro, na Índia, para discutir o futuro do mercado de trabalho. Ela foi a única brasileira na lista de indicados.
Liliane é fundadora e CEO da Gestão Kairós, consultoria em sustentabilidade e diversidade. A primeira indicação ao prêmio, no ano passado, foi uma surpresa para a empresária. “Eu até demorei um pouco para responder ao convite para o congresso, pensando que era trote. Como esse pessoal chegou até mim?”, brinca. Negra, lésbica e de origem humilde, a empresária conta que a própria vivência a incentivou a se envolver na defesa dos temas com os quais trabalha.
A primeira experiência que ela teve na área foi em um estágio na Philips, durante a graduação em relações públicas na Faculdade Cásper Líbero. Na época, atuava na área de desenvolvimento sustentável. Depois, passou por empresas como Banco Real, Walmart e Votorantim, até decidir abrir o próprio negócio. Além de empresária, a paulistana é professora convidada de pós-graduação no curso de gestão estratégica para a sustentabilidade na Fundação Instituto de Administração (FIA) da USP.
Tem também uma cadeira fixa na pós em responsabilidade social empresarial e sustentabilidade do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), onde ministra aulas sobre sustentabilidade e diversidade. “Eu tive a sorte de, mesmo estudando em escola pública, ter alguns professores geniais, que me inspiraram”, lembra.
Ela conta que passou a compartilhar o que sabe tanto por valorizar o papel dos educadores quanto por acreditar que falta discussão dessas temáticas em sala de aula .
“Não falamos da forma como deveríamos sobre sustentabilidade e diversidade na escola; na faculdade, também, não. Então, eu entro para falar na pós e nas empresas”, explica a mestre em políticas públicas pela Fundação Getulio Vargas. Entre 2017 e 2019, Liliane ministrou mais de 150 palestras, treinou pelo menos 15 mil profissionais e teve cerca de 400 artigos e matérias publicados na internet. Além disso, escreveu um livro para ensinar lideranças a aplicarem a igualdade e a inclusão na prática.
“A violência psicológica é cotidiana”
Liliane sentiu os desafios de ser mulher no mundo corporativo. “Já tanto escutei falas genéricas, do tipo ‘tal área é a menos produtiva porque é a que tem mais mulheres’, quanto vivenciei situações de assédio, de um homem tentar me agarrar em um lugar fechado”, conta. “Nunca presenciei um funcionário da minha equipe sendo cantado ou assediado. Já com minhas funcionárias, isso aconteceu mais de uma vez.” De acordo com ela, a violência psicológica contra mulheres acontece cotidianamente no mercado de trabalho, de forma sútil e difícil de controlar e de provar.
Leia
Como ser um líder inclusivo — fuja do diversitywashing e valorize a diversidade: seu guia para construir uma sociedade mais justa e uma empresa mais competitiva
Autora: Liliane Rocha
Editora: Scortecci
80 páginas
R$ 35
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