Correio Braziliense
postado em 18/05/2020 14:00
Berlim — Mundialmente reconhecida como exemplo no combate à covid-19, a Alemanha está em outra fase da pandemia: a expectativa é de que o pico tenha ficado para trás. Nacionalmente, a quarentena começou a relaxar na semana de 20 de abril, e as aulas voltaram no início de maio, mas medidas de distanciamento social continuam. A estratégia alemã envolveu testes em massa desde o princípio, a fim de rapidamente identificar os infectados e isolá-los. Também se fez presente desde o começo da crise a solidariedade.
Vizinhos oferecendo-se para fazer compras para idosos e outras pessoas do grupo de risco se tornaram comuns. O companheirismo também mostrou a cara entre empresas. A rede de lanchonete McDonald’s ficou quase sem clientes. Em vez de despedir os funcionários ou deixá-los sem atividade, a companhia resolveu “emprestá-los” para redes de supermercados. Em todo o país, profissionais que passaram a ficar mais em casa pelo confinamento resolveram usar esta oportunidade para ajudar os outros de diferentes maneiras.
Entre eles, o britânico Jon Worth, 39 anos, que vive na capital alemã há pouco mais de seis anos. O graduado em filosofia, política e economia pela Universidade Oxford começou um projeto de compras solidárias no prédio onde mora, no bairro de Kreuzberg, em Berlim. Ele começou a se oferecer para fazer compras e entregar produtos de mercado e farmácia para moradores dos 40 apartamentos do edifício e avisou os vizinhos por meio de e-mails e cartazes. A primeira encomenda foi feita em 23 de março. Com o tempo, ele recrutou mais 20 interessados em entregar as compras. “Atualmente, temos mais voluntários do que precisamos”, comemora o mestre em política europeia e administração.
Para deixar tudo mais fácil, Jon lançou um site para receber os pedidos: o shop4me.team. De segunda a sábado, os integrantes deixam as mercadorias na porta dos vizinhos e avisam por mensagem. Tudo gratuitamente e voluntariamente. Jon também oferece aos residentes mais velhos ajuda para lidar com a tecnologia, ensinando, por exemplo, como fazer uma chamada por Skype. “Projetamos um sistema que funcionou para um edifício e sabemos que pode ser escalado e ele está pronto para ser replicado. Já recebemos pedidos do Reino Unido, da França e do Brasil para isso”, conta.
O britânico trabalha como autônomo, prestando consultoria para políticos e campanhas, e tem um blog sobre política europeia (jonworth.eu). Ele mora com a esposa, que ajudou no desenvolvimento do site, e faz entregas usando uma bicicleta com reboque com capacidade para 30kg. O grande segredo para uma rede de voluntariado como essa dar certo, acredita Jon, está na confiança que só pode ser construída localmente, já que esse tipo de projeto envolve pagamento. Entre vizinhos e conhecidos, é mais fácil ter segurança de que a pessoa pagará pelas compras, por exemplo.
Jon se sente aliviado pela maneira como a Alemanha está enfrentando a crise. “Talvez eu tenha sorte de estar fazendo isso em uma cidade e em um país que parece estar lidando relativamente bem com a pandemia”, afirma. Ele percebe, por meio de notícias internacionais sobre o Brasil, que autoridades e parte da população não está levando o problema tão a sério quanto deveria. “Os pais de dois amigos meus foram internados e facilmente poderiam ter morrido. Talvez precise chegar perto o suficiente das pessoas para que elas vejam o impacto. Eu espero, pelo bem do Brasil, que as pessoas se conscientizem sobre a seriedade da situação”, reflete.
Quer replicar?
O site, disponível em alemão e em inglês, é feito em código aberto e fácil de usar, segundo Jon Worth. Quem quiser replicar não precisa nem criar um nome de usuário e senha. Interessados devem entrar em contato pelo site. O portal conta com um sistema de notificação por aplicativo de mensagens sobre pedidos.
Três perguntas para
Jon Worth, idealizador do shop4me
Como você teve a ideia do shop4me?
O ponto de partida foi a conversa com um amigo médico. Ele disse que você deve considerar três grupos ao lidar com o coronavírus: o de risco, o de baixo risco e um terceiro, que, provavelmente, transmitirá a doença, incluindo famílias e crianças pequenas. Idealmente é preciso tentar manter os três separados. Eu não sou velho, não tenho família, não sou grupo de risco e comecei a refletir sobre como eu poderia fazer para ajudar a manter esses grupos separados. A partir disso, pensei no edifício onde moro, que tem 40 apartamentos, onde vivem muitas pessoas idosas e famílias. Assim, nasceu o shop4me. A situação em que existe mais probabilidade de ter contato com alguém infectado é durante as compras. Então, a lógica foi tentar achar um meio de garantir que as pessoas do grupo de risco não precisem sair além do estritamente necessário.
Qual foi a reação dos vizinhos?
Foi e continua sendo extremamente positiva. Houve apenas um que me disse: “você está assustando as pessoas”. O que achamos um pouco estranho, porque essa não era a nossa intenção. Mas a maioria achou a iniciativa muito boa. Alguns não precisam disso no momento, mas ficaram contentes de poder contar com essa ajuda caso precisem. A iniciativa até aproximou os vizinhos e fizemos uma chamada pelo Skype para bater papo. Isso é bem engraçado. Podemos estar fisicamente mais distantes, mas sabemos que podemos contar uns com os outros. E isso é muito bom. Agora, também conheço funcionários no supermercado que eu não conhecia antes.
Você acha que a solidariedade se intensificou durante a pandemia?
Eu acho que, em Berlim, isso é bastante forte. Existe muita disposição em ajudar os outros. Talvez a dificuldade esteja em aceitar a ajuda (risos). Muitas pessoas idosas tendem a recusar esse tipo de serviço, elas querem ser realmente independentes. Outra dificuldade é com relação a coordenar as ofertas de ajuda. Uma dúvida que surge é onde aplicar essa solidariedade: devo percorrer 8km até o outro lado da cidade para ajudar pessoas ou devo dar a mão para quem mora perto? Limitar a circulação de pessoas é importante para conter o coronavírus. Então, isso é um pouco do desafio. Onde a necessidade está e onde os voluntários estão não correspondem necessariamente.
*A jornalista é bolsista do Internationale Journalisten-Programme (IJP)
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