Correio Braziliense
postado em 31/05/2020 04:13
Em 2018, a brasiliense Aisha Mbkilia, 22 anos, teve o nome listado na edição brasileira da Forbes Under 30. Nascida em berço artístico, Aisha é modelo, DJ, atriz, diretora, produtora e dançarina. Ela recorda-se da infância no Plano Piloto, onde cresceu com a mãe e a avó, e teve o primeiro contato com o mundo do esporte e da arte. “Não me lembro de a arte não estar presente na minha vida. Por estar em mim, mas também porque minha família me proporcionou isso”, relembra.
A avó, professora aposentada da rede pública, tem um ateliê de moda étnica há 30 anos, onde Aisha teve o primeiro contato com o segmento. Na escola, não era diferente. “Lembro-me de, muito pequena, estudar no Canarinho e ter aulas de criatividade. Era um segmento teatral, isso já me trouxe outra visão desde muito novinha”, conta. Durante a infância, Aisha praticou ginástica rítmica, ginástica acrobática, nado sincronizado e capoeira. Na adolescência, fundou a companhia de dança Ashantis Negras com um grupo de amigas.
Aos 17 anos, a modelo decidiu se mudar sozinha para São Paulo, em busca de apoio para seu trabalho. “Esse processo foi muito doloroso. Sair da minha cidade, onde minha essência foi criada, para ir para a Babilônia que é São Paulo”, diz. “Em Brasília, até existe esse suporte, mas é uma cidade mais nova. As coisas que acontecem em São Paulo acontecem em Brasília em outra escala. Eu preferi esse caminho, porque tive pressa”, confessa. Aisha conta que a vivência que teve com a mãe e a avó a fez amadurecer cedo.
Por isso, a idade não foi uma barreira tão significativa. “Elas me levavam a grandes conferências, fóruns mundiais, marchas das mulheres negras. Eu estava em lugares onde crianças normalmente não estão”, relembra. “Isso me trouxe tal maturidade que, quando cheguei a São Paulo, as pessoas nem sabiam a minha idade. Isso não era um assunto”, frisa. Na capital paulista, Aisha cursou teatro e, paralelamente, começou a receber diversas propostas de trabalho.
Ela destaca a vez em que compôs um jingle para a primeira deputada estadual transexual do Brasil (Erica Malunguinho, por SP) e a participação em uma campanha global da Nike como única brasileira. “Estou fazendo uma criança preta que nunca se vê representada pensar ‘caramba, eu posso ser modelo’. Porque a realidade é essa, a gente não se vê. E o Brasil é um país com mais de 50% não branco”, afirma. “As minhas conquistas são baseadas nisto: desafiar estatísticas previstas para nosso corpo feminino e preto”, acrescenta.
De acordo com a modelo, é senso comum pensar que pessoas negras sempre têm “uma história horrível” para contar, mas a dela não é de sofrimento. “Eu vim de outro background. Eu vim de Brasília, do Plano Piloto. Isso também é política, é a conquista de esmagar estatísticas.” O conselho dela para jovens alcançarem sonhos profissionais é, antes de tudo, ter persistência. “Eu fui e voltei para São Paulo várias vezes no primeiro ano, às vezes duas vezes por semana”, conta. “Não que eu seja um exemplo de persistência, mas ela é a primeira coisa. O não a gente já tem”, brinca.
Seja autêntico
O segundo conselho da modelo é manter a individualidade em qualquer circunstância. “A gente pensa duas vezes antes de contrariar algo do trabalho por medo. Mas nossos valores são o mais importante”, diz. Ela se lembra de quando escutou um comentário transfóbico no trabalho, durante uma seleção de elenco, e decidiu comunicar ao diretor. “Existe uma hierarquia no cinema e ninguém fala com o diretor. Mas eu fui lá e falei ‘você vai ter que parar o ser agora’. Eu nunca posso deixar uma transfobia passar em branco.”
Isso vale também para os jovens que estão em época de decidir que carreira seguir. “Eu vejo os alunos que estão prestes a se formar ou que vêm de uma cidade como a nossa seguindo o formato que o pai mandou”, comenta. “Eu poderia ver as mães das minhas amigas da escola rindo da minha escolha e ir fazer um cursinho para entrar na UnB. Se é isso que você quer, tudo bem, vá para a UnB, mas não se prenda”, acrescenta. “Eu vim para São Paulo, mas eu quero o mundo. Este é só o começo.”
Tempo de reflexão
Para Aisha, a quarentena tem sido momento de se reorganizar e se reinventar. “Com o tempo, a gente vai tentando manter uma rotina. Estou fazendo aulas de dança e atividades físicas em casa. Tenho cozinhado mais e melhor, revisitado o consumo e refletido muito”, conta.
O “novo normal” para Aisha Mbkilia
“O novo normal é um termo que me deixa bem misturada, porque muitas vezes o novo normal não é, de fato, novo. Eu vi a Vogue fazendo uma capa com a Gisele Bündchen falando sobre o novo normal. Ela representa 500 anos de um padrão branco e eurocêntrico determinando o que é o novo normal. A gente tem vários momentos enquanto jovem negro no Brasil. Por exemplo, ao mesmo tempo em que há várias vitórias acontecendo na minha vida pessoal, existe sempre o racismo para mostrar outra realidade. Ao mesmo tempo que a gente tem uma quarentena ‘ok’, o genocídio da população negra ainda acontece, e isso me deixa inquieta.”
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