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Desafio da educação é acabar com a demagogia

Presidente executiva do Todos pela Educação aponta que há uma parte da sociedade conivente com o atraso

Correio Braziliense
postado em 12/01/2020 08:16
Presidente Executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz acredita que o maior desafio da educação no Brasil hoje é acabar com a demagogia e ter gestores realmente comprometidos. Para ela, uma parte da sociedade que é conivente com o atraso. Ela vê retrocesso “sem precedentes na gestão federal da Educação no último ano”, mas avanços importantes na educação básica nas últimas duas décadas, como a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do governo federal para medir a qualidade do ensino nas escolas públicas (Ideb) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que expira este ano.
 
 
“Em 2007, os alunos de 5º ano tinham 28% de aprendizagem considerada adequada e, em 2017, o resultado foi de 60%, mais que dobrou. Não temos, no Brasil, histórico de indicador social ou econômico com esse resultado”, comemora. Segundo Priscila, bons resultados ainda não chegaram no ensino médio. Ela defende ensino em tempo integral para os jovens e o fim do ensino médio noturno, além de alterações no Fundeb para reduzir ainda mais as desigualdades na educação e para introduzir distribuição de recursos atrelada a resultados. 

Priscila considera a introdução da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) uma evolução, por dar foco e criar um instrumento de alinhamento e articulação das diferentes políticas. E defende a valorização do docente.  “No Brasil, professor é visto como atividade, não como profissão. Você já viu um cirurgião que vende natura nas horas vagas? Mas professor, tem”. E aconselha pais em busca de escolas: “vejam o resultado do Ideb e se a escola é aberta à participação dos pais”. Na quarta-feira, ela concedeu a seguinte entrevista ao Correio:  

Atualmente, qual é o maior desafio da educação no Brasil?

Por incrível que pareça, o maior desafio é ter pessoas comprometidas nos cargos de lideranças, pois as políticas decorrem do comprometimento dos gestores. Há um certo descompromisso das lideranças brasileiras com relação à indicação de cargos responsáveis pela educação. No nível federal, o ministro da Educação não tem uma agenda educacional, mas outras agendas e preocupações, e isso é um obstáculo para falar em políticas específicas, que são uma decorrência do comando dos que tocam os órgãos responsáveis pela modelagem e execução das  políticas. O que mais precisamos hoje é de compromisso real, e não demagógico, das lideranças políticas com a educação. 

Temos uma crise na Educação?

Não temos uma crise generalizada, pois a máquina funciona. O problema é que não produz resultados, mas  temos uma crise de aprendizagem. Para que as políticas produzam resultados, é necessário investir em três prioridades. Entre elas, políticas docentes. Há uma ideia muito forte no Brasil de que basta contratar professores com vocação, que eles ensinam bem e, se não ensinam bem, é porque não têm vocação. Não funciona assim. Um bom professor se forma com política de incentivo e de indução. Isso é o que vai levar os dois milhões de professores a ter mais qualidade. Esse, da vocação, é um pensamento preguiçoso e joga o problema para o professor. Além disso, estamos vivendo a farra da Educação a distância (EAD). Um exagero. Tem que ter currículo sério e boa gestão. Outra prioridade é a primeira infância. Os alunos já chegam na escola muito desfasados por falta de políticas voltadas para o desenvolvimento de crianças até cinco anos, período em que 90% das conexões neurais estão sendo formadas. Professor e aluno são a base da boa escola. E, por fim, falta gestão e governança. Há falta de prioridade para a educação. Você entra em uma secretaria de Fazenda e em uma secretaria de Educação é dá para ver a diferença. Temos tolerado no MEC um ministro que não tem a menor condição. Ele  coloca vários bodes na sala, como doutrinação, Paulo Freire, etc., como se esses fossem os problemas da educação. Cortinas de fumaças são estratégias de pessoas despreparadas, que não sabem o que fazer. 

De cada 100 jovens que concluem o ensino médio, apenas nove aprenderam o que seria esperado em matemática e 28 em língua portuguesa, segundo dados do Todos pela Educação.... 

É muito pouco. E o grau de indignação da sociedade é no nível da apatia. É simplesmente uma catástrofe e já estamos vendo as consequências do descaso. O Brasil passou séculos sem olhar para a educação. Precisamos criar o constrangimento de dizer aos gestores públicos: olha, você foi eleito, mas não tem carta branca, não podemos conviver com 9% de aprendizagem. Há uma conivência muito grande. Tem um grupo de brasileiros apoiando a tese fraudulenta, que defende que o problema da educação é doutrinação, falta de militar nas escolas ou o Paulo Freire. Não podemos ser enganados ou coniventes com quem tenta escapar da responsabilidade de fazer o que precisa ser feito. Estão perdoando a fraude e protegendo a mentira que está sendo contatada para a população brasileira. Há certa conivência dos setores esclarecidos, que aceitam isso em troca de ganhos em outras áreas, como se o crescimento econômico compensasse os problemas na educação. 

Houve avanços nas últimas décadas?  

Sim, e avançamos mais do que o cidadão comum consegue enxergar. O problema é que o Pisa  (Programa Internacional de Avaliação de Alunos, rede mundial de avaliação de desempenho escolar coordenada pela OCDE), e a onda de melhoria ainda não chegaram no ensino médio. O final da educação básica ainda não produziu resultados bons o suficiente, mas a educação básica vem avançando nos últimos 20 anos. Um dado concreto é que, em 2007, os alunos de 5º ano tinham 28% de aprendizagem considerada adequada e, em 2017, o resultado foi de 60%, mais que dobrou. Não temos, no Brasil, histórico de indicador social ou econômico com esse resultado. 

Essa evolução se deve a que?

A vários fatores. Não teve, e nunca vai ter, uma bala de prata. Foi um conjunto, como a ênfase na alfabetização, o aumento de matrículas na educação infantil, na divulgação de avaliações com transparência. Os resultados do 5º ano são, sobretudo, decorrentes do empenho das prefeituras. Os prefeitos começaram a usar a educação como bandeira política, o que é muito bom. Antes do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do governo federal  para medir a qualidade do ensino nas escolas públicas), não faziam isso. É o resultado da transparência, pois a avaliação mostra o avanço em uma gestão específica. O Brasil aprendeu a fazer fundamental. Agora, é continuar e chegar a 80% de aproveitamento, patamar de país asiático. São outras etapas, e vai ficando mais complexo, a defasagem vai se ampliando. Outra coisa é que houve mais articulação do MEC com os estados. Nos últimos anos, houve a aprovação da reforma do ensino médio, criou-se o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica,  formado por recursos dos três níveis da administração pública para financiar a educação básica pública), o Ideb. Em termos de políticas públicas, aconteceu muita coisa. Foi bem dinâmico. 

Em 2000, o Brasil investia R$ 2 mil ao ano por aluno e, em 2018, foram R$ 6,3 mil. Por que não melhora? Falta financiamento ou gestão na educação?

Os investimentos aumentaram e, claro que isso importa, mas não é tudo. Investimento em um projeto equivocado não gera resultado. Se o projeto tiver falhas, pode dobrar o investimento, que não adianta. É o mesmo que colocar dinheiro em uma peneira. 

E onde estão os buracos da peneira?

Na formação de professores, por exemplo, no uso das avaliações para mudar apenas a prática das aulas. As avaliações precisam servir para mudar também a gestão da rede e da escola. Está piorando o rendimento em matemática? então vamos rever. Português está bom? mantém a prática. Falta aumentar o ensino em tempo integral, pois as redes com tempo integral têm resultados melhores, e acabar com o ensino médio noturno, que é uma farsa. Tem um pessoal, com um discurso revestido de esquerda, que diz que é necessário porque alia com o trabalho, mas isso tem que acabar. Vamos fazer outras coisas para a questão do trabalho, pensar em bolsas, em trabalho nas próprias escolas. Tem que resolver isso.  

Hoje temos uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e uma Base Nacional de Formação de Professores, aprovada no fim do ano passado. É uma evolução?    

Sim, é uma evolução. A BNCC ainda não é excelente, mas é uma primeira experiência e o texto terá que ser revisado periodicamente. O mais importante é o potencial de alavancagem de resultados que traz. É muito importante ter um instrumento de alinhamento e articulação nas diferentes políticas de formação continuada, de avaliação, de currículo. O importante é ter explícito o que os alunos têm o direito de aprender. Se o desafio é a aprendizagem, o que fazer para conseguir isso e dar as diretrizes: qual livro didático usar, qual avaliação aplicar, que formação o professor deve ter. O documento ainda é frágil, mas foi dado o primeiro passo e agora há foco.  

Quais são as fragilidades?  O que você mudaria? 

Acho que a BNCC foi discutido de forma muito ligeira, principalmente com relação ao ensino médio. É pouco moderna, pouco atraente para os alunos de ensino médio. Conversa pouco com a juventude atual e é muito detalhada, ao mesmo tempo em que aprofunda pouco. Não me parece muito contemporânea. 

Como criar uma política nacional de valorização do docente? O Brasil nunca teve nada próximo a isso?

O Chile fez isso. O que é comum nos países do grupo que está no ranking do PISA é que eles não criam, por exemplo, canal de denúncia para professores. Eles recrutam os bons alunos do ensino médio para formação de professores, levam a sério concursos para a contratação e quem passa pela peneira ganha mais, e oferecem profissionalização e formação continuada. No Brasil, professor é uma atividade e não uma a profissão. Aqui é normal ser professor e vender Avon ou ser motorista de Uber. Você conhece um cirurgião que faz cirurgias e nas horas vagas vende Natura? Ou em engenheiro civil? Mais professor, sim. A remuneração é uma parte da capacidade de investimento na educação, que está relacionada à arrecadação de impostos. No Brasil, se contrata mais professores do que é preciso. Inflam a folha de pagamento. É melhor ter menos professores com salários melhores e mais cobrança por resultados. 

E a militarização do ensino público? O DF é um dos exemplos de adesão. 

É uma modelo que está enganando a população, pois não vai entregar o que promete. Nas escolas militares tradicionais, não é a presença dos militares que faz os alunos aprenderem mais, mas o fato de essas escolas terem ensino em tempo integral, investimento três vezes maior, seleção de alunos, que já chegam com um nível mais alto. Eles pegaram esse modelo que dá certo e extraíram o único elemento que não tem nada a ver com o desempenho do aluno, que é a presença militar, e aplicaram como política pública. Entendo que os pais se sentem melhor, porque os filhos estão mais seguros. Também sou mãe e é importante saber que o filho está seguro na escola, mas não tem nada a ver com a qualidade do ensino. Não dá para o governo vender isso como solução. 

Atualmente fala-se muito no modelo do Ceará, do Espírito Santo e do Piauí. Os estados estão mais maduros?

O trabalho dos estados foi descortinado e ganhou maior espaço devido à ausência do MEC. Realmente passamos por poucos períodos em que o MEC esteve ótimo, mas com esse nível de incompetência e inoperância, se escondendo atrás de uma densa cortina de fumaça, nunca houve nada parecido, nem no período militar. Eu acompanho o MEC há mais de 20 anos e nunca vi nada parecido. Então, os olhares se voltaram para os estados e ilhas de excelência apareceram, como o Ceará, Pernambuco, o Piauí e agora estamos vendo o Maranhão. O Nordeste se destaca em educação hoje em dia. O MEC sempre tomou o debate público sobre educação no Brasil. Sobre os modelos, nem sempre se trata de fazer diferente, muitas vezes, é uma questão de fazer direito o básico. O que explica o sucesso do Ceará é um conjunto muito simples, e bem executado, de políticas baseadas em evidências. Se funciona, então vou continuar fazendo. É isso. Em Pernambuco, o ensino médio de tempo integral tem uma sequência de várias gestões com continuidade.   

E outros modelos, como o da Escola Ponte de Portugal, atualmente muito comentado.  O Brasil está atento?   

Não há evidência de que inovações, como a da Escola da Ponte, tenha resultado em termos de aprendizagem. São modelos pitorescos, que não servem para escalar para uma quantidade grande de alunos, não servem como política pública. E o exagero pode levar a  cair no outro extremo da escola militar. As inovações têm que ser consideradas dentro de uma plataforma de política tradicional, assentada em uma estrutura convencional, para acelerar e trazer soluções melhores. Quem aposta em inovação como solução, erra. Inovar no Brasil é fazer o básico bem feito. Eu diria que a questão não é inovação, mas modernização. Por exemplo, ensinar estatística, incluir conteúdos socioemocionais, material digital é modernizar.  Estatística é superimportante para programação, para compreender uma pesquisa de opinião pública ou eleitoral. É uma ferramenta da matemática importantíssima, mas não está no currículo do ensino médio. Incluir estatística não inova, mas moderniza, para que o aluno possa aprender a viver no mundo contemporâneo. Temos que ser pragmáticos, ter o pé no chão. Não adianta queimar etapas. A inovação vai encontrando o seu es espaço.  

O Fundeb vence este ano, conforme prevê a Constituição, mas o Congresso estuda tornar o mecanismo permanente. É uma oportunidade de reformar o fundo?  

É uma oportunidade de ter um instrumento mais justo, mais redistributivo. Hoje, a diferença entre os municípios chega a mais 500% em termos de investimentos por aluno. É absolutamente injusto ter aluno que vale menos do que outro. Todos estão no Brasil, então, para ser mais equitativo, tem que ser mais redistributivo. Antes do Fundeb, a diferença chegava a cerca de 13.000%, mais ainda é possível reduzir mais as diferenças. 

Como se dá essa diferença?

São vários fundos formados por 26 estados e o governo federal. Serve como mecanismo para reduzir a desigualdade entre as redes que investem mais e as que investem menos. E tem a complementação da União, conforme o estabelecido pela Constituição. Tem municípios que só tem FPM (Fundo de Participação dos Municípios), não têm arrecadação própria, e outros, que tem arrecadação alta, royalites. No Todos pela Educação, defendemos uma equalização ainda maior, com uma distribuição de recursos que considere os indicadores fiscais e socioeconômicos dos municípios, destinar recursos para redes de ensino mais vulneráveis e no aumento progressivo da participação da União. Pode ser uma oportunidade de gerar mais resultados, ou seja, ter uma forma de investir baseado em resultados e não apenas investir por investir.  Muitos municípios, 40% não chegam nem no investimento mínimo de R$ 5,7 mil ao ano por aluno. Por exemplo, depois que chegar no valor mínimo por aluno, os valores poderiam estar atrelados a resultados. Mas só o Fundeb é insuficiente. É preciso combinar com outros incentivos, mas o MEC não tem conseguido fazer essas políticas. 

As mudanças propostas pela equipe econômica para o Pacto Federativo, por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), enviada ao Congresso no fim do ano passado, podem impactar a educação? 

Essa PEC ainda está em discussão, mas, sim, o texto atual, que ainda pode ser modificado, gera consequências, pois a proposta de juntar os mínimos constitucionais para a saúde e para a educação pode afetar os investimentos em educação. Isso porque quando a saúde está ruim, é uma espécie de morte rápida. No caso da educação, é uma morte lenta. Como os ciclos políticos são de quatro anos, o prefeito sempre vai querer atender à demanda da fila do hospital e vai remanejar da educação, caso esses dois recursos passem a se comunicar, como está na proposta. Os adultos são os afetados pela saúde e têm mais influência. Votam. A educação se refere às crianças, que não têm influência no debate e não votam, portanto, juntar os dinheiros será muito desvantajoso para educação. A sociedade precisa discutir isso e ver se quer arriscar que isso aconteça. Eu entendo as razões de acabar a vinculação. Mas não se pode correr esse risco. O Brasil não tem maturidade política para isso.   

Estamos no início do ano. Que conselho daria aos pais que estão a procura de escola pública ou privada?

Que vejam o resultado da escola no Ideb e, mais do que isso, se está melhorando, piorando ou está estagnado. Já temos o Ideb desde 2007. Já temos um histórico. Ver  o plano da escola para melhorar no Ideb. E mais, ver se a escola tem abertura para a participação dos pais. Se há um fluxo de comunicação entre a escola e a família. Uma escola que marca reunião de pais na terça-feira às 10 horas da manhã, quando está todo mundo trabalhando, não quer os pais ali. Escola fechada para as famílias perde um importante instrumento que gera resultados, que é a abertura à  participação das famílias.

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