Holofote

"A verdade é refém dos fatos", afirma Sérgio Lüdtke ao Holofote

O especialista em novos empreendimentos digitais no jornalismo comenta o papel dos núcleos de checagem de fatos e o futuro deles na profissão

Igor Silveira, Guilherme Goulart
postado em 16/01/2019 11:40
Sérgio Lüdtke
O jornalista Sérgio Lüdtke é uma das autoridades brasileiras na área dos novos empreendimentos digitais no jornalismo. Estudioso de uma dessas vertentes ; as agências de checagem de fatos ; ele avalia o trabalho da Lupa, do Aos Fatos, do Boatos.org e, mais recentemente, do Holofote, primeiro núcleo de verificação de dados do Distrito Federal, como um esforço dos veículos de comunicação no combate às notícias falsas. "Parece-me que as grandes contribuições dessas iniciativas são manter uma parcela da população alerta para a possibilidade de estar aceitando ou compartilhando desinformação", analisa o especialista.

Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), com master em gestão de empresas jornalísticas pelo ISE Business School e MBA em marketing digital pela FGV, Sérgio atuou como editor do Projeto Comprova. A iniciativa teve papel relevante nas eleições presidenciais de 2018 ao unir 24 veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar "informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas". O Comprova, por exemplo, checou e publicou 147 histórias na plataforma especialmente criada para o período eleitoral. "Foi a primeira grande experiência de jornalismo colaborativo no país", sentencia.

Sérgio inaugura série de entrevistas previstas pelo Holofote ao avaliar a atuação dos núcleos de checagem, as dificuldades no processo de verificação e o futuro dessas plataformas.

Que avaliação o senhor faz sobre o crescimento dos núcleos e das agências de checagem de fatos no Brasil e no mundo?

Os núcleos e as agências são uma demanda de um ambiente altamente infestado pela desinformação. Essas ações ou organizações são a primeira e, por enquanto, única barreira a defender a sociedade dos ataques dos produtores e distribuidores de conteúdo falso, malicioso ou não. Eu não coloco a imprensa tradicional nesse muro, porque a imprensa tem uma pauta própria, ela não costuma reagir a esta pauta imposta pelas redes sociais. Além disso, uma parte dos meios de comunicação está mais fechada a partir da mudança do eixo de financiamento da publicidade para as assinaturas. Uma imprensa aberta, atenta e reativa ao que emerge nas redes seria um reforço grande na contenção da desinformação.

Qual é a importância desse tipo de iniciativa no atual momento geopolítico nacional e internacional?

Eu creio que, embora consigamos frear a disseminação de alguns conteúdos enganosos, ainda não temos instrumentos para medir danos. Então, parece-me que as grandes contribuições dessas iniciativas são manter uma parcela da população alerta para a possibilidade de estar aceitando ou compartilhando desinformação e ajudar num processo de educação para a decodificação das artimanhas dos conteúdos falsos.


Como deve se comportar um núcleo de checagem quando comete um erro sem que isso prejudique a credibilidade da atividade? O senhor tem um exemplo para citar?

As iniciativas de checagem dependem, mais do que tudo, da credibilidade que conseguirem conquistar. Então, dois valores são fundamentais: rigor e transparência. Rigor na apuração, o que quer dizer que deve tentar sempre ser conclusivo, baseado em fatos e nunca em interpretação de evidências e não ser escravo da pressa; e transparência em todos os níveis, desde as informações sobre como se organiza, quem é quem na iniciativa, quem financia e, sobretudo, como foi o processo de apuração que levou à conclusão que se deu à informação verificada. É preciso que se tenha uma política de erro zero. Mas, se um erro ocorrer, a transparência é o valor requerido. A iniciativa deve fazer a correção devida, informando o que levou ao erro e dando o máximo destaque para a informação correta.

Que tipo de informações são as mais complicadas de serem checadas?

As informações que não são afirmativas, que insinuam baseadas em interpretações. Quanto mais a desinformação se afasta dos fatos, mais complexa é a verificação. Em muitos casos, é impossível ter algo conclusivo.

"Provavelmente, seja a área do jornalismo (núcleos de checagem) que vá experimentar o maior crescimento por ainda muitos anos"

O Projeto Comprova foi um marco na checagem de fatos no Brasil a partir do envolvimento de diversos veículos de comunicação no combate às notícias falsas durante as eleições presidenciais . Que balanço o senhor faz dessa iniciativa?

O Comprova é um marco não só pelo que mostrou, pelos números que alcançou (foram 147 verificações publicadas de boatos com grande viralização e 78 mil arquivos recebidos para verificação pelo WhatsApp, por exemplo), mas também pelo que inspirou. Foi a primeira grande experiência de jornalismo colaborativo no país, com profissionais de 24 redações trabalhando em conjunto, remotamente, para verificar a veracidade de informações que foram disseminadas nas redes sociais sobre a campanha presidencial. E foi uma prova de que um propósito comum pode ser muito mais motivador do que a concorrência.

As verificações do Comprova mostraram que a desinformação pode influenciar no resultado de uma eleição. Qual é o antídoto para contê-la?

Não acho que essa informação seja verificável. De qualquer modo, não existe um antídoto, mas uma série de ações que podem ser preventivas. A educação midiática pode fazer uma parte, a ação dos núcleos e das agências de fact-checking pode fazer outra, uma cobrança da sociedade por mais transparência do Estado, das empresas, do jornalismo e das plataformas digitais também pode ajudar. Mas sempre falaremos em contenção, nunca em eliminação.
"(O Comprova) foi uma prova de que um propósito comum pode ser muito mais motivador do que a concorrência"

Vivemos a era da pós-verdade, na qual a opinião pessoal e o apelo emocional se sobrepõem ao fato. Que análise o senhor faz desse fenômeno de alcance internacional?

Há todo um ambiente contaminado por desinformação disseminada com o intuito ou não de causar dano. Muita coisa contribui para isso: o acesso fácil e barato aos meios de produção e de distribuição de informação para toda a população, um ambiente político muito polarizado, uma predisposição das pessoas a acreditar naquilo que reforça as suas crenças, baixa confiança no jornalismo, excesso de opinião desinformada, baixa qualidade do ensino e uma diferença brutal da capacidade de atração do boato em relação à notícia. Enquanto a mentira pode ser criada no limite da imaginação de quem a cria, a verdade é refém dos fatos.

Temos no Brasil iniciativas conceituadas de agências e núcleos de checagem de fatos, como Lupa, Boatos.org, Aos Fatos e outros. Que avaliação o senhor faz desse tipo de trabalho? Trata-se de um novo nicho no jornalismo?

Sim. E deve crescer muito mais nos próximos anos, com áreas de atuação mais demarcadas dentro do jornalismo, mas também fora dele. Provavelmente, seja a área do jornalismo que vá experimentar o maior crescimento por ainda muitos anos.

No livro Pós-Verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news, o jornalista Matthew D;Ancona afirma que a mentira "é parte integrante da política desde que os primeiros seres humanos se organizaram em tribos". Qual o papel das redes sociais e da tecnologia para o impulsionamento do engodo?

Em cerca de uma década, a tecnologia colocou nas mãos da maior parte da população um instrumento que torna cada pessoa um produtor de conteúdo e ampliou o público que recebe informação incessantemente na mesma proporção. Essas pessoas não tiveram qualquer tipo de preparo para lidar com a responsabilidade pelo que se propaga. Muito do que circula é tratado como se fosse produzido para círculos mais íntimos e não há uma ética reconhecida pelas pessoas para isso. As redes e a tecnologia são instrumentos que usamos sem ter lido o manual.

Polyanna Ferrari, no livro Como sair das bolhas, avalia que "o jornalismo tem a chance agora de assumir um caráter mais procedimental, através da rotina de checagem e confrontação dos dados, ganhando nova tipologia, na qual a checagem passa a ser notícia". Vivemos uma nova era na profissão?

Sim, mas isso não terá efeito se o jornalismo não estiver mais conectado com a população, não for mais transparente e aberto e, sobretudo, não conseguir produzir narrativas mais atraentes.

"Muito do que circula é tratado como se fosse produzido para círculos mais íntimos e não há uma ética reconhecida pelas pessoas para isso. As redes e a tecnologia são instrumentos que usamos sem ter lido o manual"






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