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Entrevista com Jean-Luc Domenach: Protestos despertam nacionalismo chinês

O especialista em China Jean-Luc Domenach fala ao Correio sobre a crise no Tibete e a reação do governo chinês

postado em 24/04/2008 11:30
O regime chinês não vai tolerar que o público e a mídia estrangeiros transformem os Jogos Olímpicos de Pequim em pretexto para manifestações e reportagens sobre os direitos humanos e a independência do Tibete. Esse é o prognóstico feito, em entrevista ao Correio, pelo sinólogo (especialista em China) francês Jean-Luc Domenach. O pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais de Paris não exclui a possibilidade de as Olimpíadas (em agosto) serem interrompidas, pelo menos em parte, caso os ;incidentes previsíveis se multipliquem;. Para ele, a vitrine onde os dirigentes desejavam expor a modernização da China poderá, então, ser estilhaçada pela repressão policial. As relações entre franceses estão abaladas desde a passagem da tocha olímpica por Paris, neste mês. Manifestantes pró-Tibete tentaram arrancar o símbolo olímpico das mãos de atletas na capital francesa. O presidente Nicolas Sarkozy, por sua vez, afirmou que só compareceria à cerimônia de abertura das Olimpíadas se o governo chinês negociar com o dalai-lama e soltar os ativistas presos. Em Pequim e outras cidades do país asiático, bandeiras da França são queimadas em frente a supermercados Carrefour. Autor de obras de referência sobre questões políticas e sociais da China, Domenach acaba de lançar novo livro na Europa, La Chine m;inquiète (A China me inquieta). Ele explicou as possíveis reações chinesas aos protestos. O que pode ocorrer com os Jogos Olímpicos diante das denúncias incessantes nos países ocidentais sobre o desrespeito aos direitos humanos na China e a repressão no Tibete? Acompanhadas do apelo ao boicote da cerimônia de abertura da Olimpíada e dos incidentes ocorridos durante a passagem da tocha olímpica pela Europa e pelos Estados Unidos, essas denúncias mal calibradas sobre os direitos humanos acabaram engendrando a onda de nacionalismo e de xenofobia que se apoderou agora da China. E que tende a se prolongar até o final dos Jogos. Com o beneplácito oficioso do regime, os internautas chineses concitam a população a boicotar produtos franceses, enquanto nas ruas já são vendidas camisetas com a inscrição ;Pela independência da Córsega; (território francês que busca mais autonomia), numa contra-ofensiva aos clamores ocidentais e da França, em particular, pela emancipação do Tibete. Denúncias mal calibradas por quê? Porque a percepção dos direitos humanos pelos chineses difere da que predomina nos países ocidentais. Para os chineses, direitos sociais e políticos vêm depois dos direitos econômicos. E estes já estão garantidos, postos em prática. Ou seja, os direitos de comer, consumir, empreender, poder escolher uma formação educacional, a profissão, viajar%u2026 Tudo isso era impensável há 30 anos. Daí o sentimento de liberdade que experimenta a imensa maioria dos chineses, hoje. Eles consideram inábil e contraproducente todo e qualquer movimento para acelerar ou queimar etapas do processo. Vale lembrar que a generalização dos direitos humanos também se efetuou progressivamente na Europa a partir do século 19. Como a população encara os governantes chineses? Os chineses detestam seus governantes. No momento, contudo, contestando as denúncias ocidentais, eles cerram fileiras em torno do regime. Passado esse espasmo nacionalista após os Jogos, a população refluirá para a posição que sempre adotou ; a de simples tolerância em relação ao governo, enquanto este lhe garantir a melhoria do nível de vida. No mais, trata-se de um regime híbrido de ditadura e capitalismo selvagem que eu definiria como ;plutoburocrático;. Ou seja, há uma plutocracia corrompida que se locupleta e os burocratas que tocam a máquina admnistrativa. Com os Jogos Olímpicos, o regime pretendia colocar a modernização econômica da China na vitrine do mundo%u2026 A modernização será colocada certamente na vitrine e, também, talvez, o autoritarismo e suas seqüelas repressivas caso os militantes das 50 ONGs ocidentais que compraram bilhetes para a Olimpíada promovam manifestações públicas pelos direitos humanos e pela independência do Tibete, distribuam folhetos, abram faixas, cartazes de protesto. Temo que os incidentes se multipliquem nas ruas e nos estádios, o que poderá levar as autoridades a redobrarem a repressão e cometerem os excessos verificados no Tibete. Não excluo a hipótese de os Jogos serem interrompidos em parte, pelo menos, se o esquema de segurança incorrer em erros graves na caça aos manifestantes. Agora, o que posso assegurar, hoje, é que a linha dura predominante no regime não terá a menor indulgência com os estrangeiros que forem à China não propriamente pela Olimpíada, mas com o propósito de realizar atos políticos. A linha dura poderia prevalecer além dos Jogos? Não creio. A luta entre facções moderadas e radicais deverá ser aplacada com o fim dos Jogos. Para o apaziguamento, o primeiro-ministro Wen Jiabao, conhecido pela moderação, exercerá papel relevante, tal como ocorreu quando das manifestações antijaponesas em 2005, na China. Afinal, o ideal do regime não é colocar gente na cadeia, perenizar uma política repressiva em larga escala, mas manter a estabilidade da plutoburocracia, o que atende aos interesses de todos e favorece o enriquecimento pessoal da classe dirigente. E os dissidentes chineses? Os dissidentes, que já não são em número considerável, se escondem ou se mantêm silenciosos na onda nacionalista e antiocidental deslanchada em Pequim, onde o clima lembra um pouco o que perdurou no início da revolução cultural de 1966. Como encara a grande concentração de jornalistas estrangeiros em Pequim para a cobertura da Olimpíada? Pode ter certeza de que os jornalistas estrangeiros serão seguidos, ouvidos, revistados a cada passo, cada um deles terá um anjo da guarda sob a forma de policial. As transmissões de seus despachos, desde que estes extrapolem a temática puramente esportiva, serão passíveis de um tipo qualquer de censura. Resta saber se tal de esquema de ciberpolícia igualmente previsível para representantes das ONGs se revelará eficaz. Aí residirá outra fonte de incidentes de conseqüências imprevisíveis. Acredita que o presidente francês, Nicolas Sarkozy, comparecerá à cerimonia de abertura dos Jogos? Fragilizado no plano interno, com índice de popularidade extremamente baixo, Sarkozy adotará a posição que prevalecer na opinião pública francesa nas vésperas da cerimônia de abertura. De qualquer forma, essa presença já ficou comprometida diante das condições estipuladas por Paris e que soam como ultimato. Ou seja, o governo francês reclama das autoridades chinesas o fim da violência contra a população, a libertação dos presos políticos e a abertura do diálogo com o dalai-lama. A resposta a tais exigências está aí ; as manifestações anti-França, a começar pelo boicote aos nossos produtos. Nesse ponto, não descarto a possibilidade de uma retaliação por parte da União Européia. Como assim? Insatisfeitas com as práticas adotadas pela China em matéria de exportações, a França e a Alemanha podem levar a União Européia a aplicar com maior rigor o critério das cotas e da qualidade dos produtos chineses destinados ao mercado europeu. As conseqüências de tal retaliação serão mais graves para Pequim quando se sabe que o mercado norte-americano em crise reduziu substancialmente suas importações da China. A China me inquieta é o titulo do novo livro que o sr. acaba de publicar. Poderia resumir as razões de sua inquietação? A redução sensível e inevitável, nos próximos 5 anos, da taxa de crescimento da economia chinesa, em torno de 11%, hoje, significara o fim do contrato social entre o regime e a população. A redução do nível de expansão será provocada por uma série de fatores ligados aos imperativos maiores para as novas etapas de modernização da economia chinesa. Assim, serão bem mais elevados os custos das políticas social e de proteção ambiental, dos grandes investimentos em tecnologia para que os produtos chineses alcancem um padrão de qualidade próprio e não constituam apenas cópias de seus similares ocidentais. Sem isso, eles deixarão de ser competitivos num mercado mundial mais exigente em matéria de qualidade, de regulação e de observância das cotas de exportação. O declínio das taxas de crescimento, implicando a estagnação dos salários, que aumentam 20% em média por ano, poderá se traduzir em tumultos e desordens sociais capazes de ameaçar a estabilidade do regime. Com a ruptura do contrato social, diferentes cenários são possíveis, mas o mais realista será o arrocho da política autoritária, e não uma abertura para a democracia. Para onde vai a China? É seu futuro a médio prazo que me inquieta.

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