postado em 14/05/2008 20:03
Para um dos dois médicos que ajudaram a descobrir o vírus HIV, a cura definitiva da Aids ainda é uma utopia. Cauteloso, o norte-americano Robert Charles Gallo, de 71 anos, concedeu entrevista ao Correio, por telefone, de Baltimore (Maryland).
Em 20 de maio de 1983, o francês Luc Montagnier isolou em um paciente o vírus da leucemia humana das células T (HTLV). Em 8 de maio de 1984, ele e Gallo publicaram o primeiro de uma série de quatro artigos na revista científica Science. Era o primeiro anúncio público da existência do HIV. ;Tudo começou a ficar claro 24 anos atrás, quando surgiram os testes de sangue;, explicou Gallo, diretor do Instituto de Virologia Humana (IHV, na sigla em inglês).
A análise das amostras e a identificação do vírus abriu espaço para novas terapias-alvo e medicamentos capazes de reduzir a infecção. Gallo adotou uma postura relativamente otimista ao prever os próximos avanços no combate à epidemia. Segundo ele, já existem técnicas que impedem o HIV de se acoplar ao DNA humano, prevenindo a contaminação. O cientista norte-americano elogiou a atuação do Brasil na luta contra a Aids e ridicularizou teorias conspiratórias sobre a doença.
Passados 24 anos desde a descoberta do HIV, o senhor considera a cura da Aids uma utopia?
Há dois modos de se falar sobre cura da Aids. Um deles é falar sobre a probabilidade de removermos os genes do vírus HIV em um paciente. Creio que isso ainda está distante e se trata de uma utopia. Outra cura possível é a produção de uma terapia que tornará desnecessários outros tratamentos. Não precisaremos mais de tantas drogas. Isso é algo mais provável, pode ocorrer na próxima década. Ao mesmo tempo, o paciente terá de usar alguns medicamentos para baixar a carga viral no organismo, o que lhe permitirá ter uma vida razoavelmente normal.
Por que é tão difícil barrar a disseminação do vírus?
Você tem de se lembrar que, até a década de 1980, a ciência não conhecia tratamento para qualquer infecção viral. Temos vacinas para algumas dessas infecções. A Aids possibilitou o início da terapia contra vírus. Foi um grande e histórico avanço médico desenvolver boas terapias contra a infecção por vírus resistentes. Por que é tão difícil a cura? Pelo fato de o HIV ser um retrovírus, que integra seus genes ao DNA do paciente nos primeiros dias. A infecção se instala porque o gene é parte do cromossomo do DNA viral. A célula infectada consegue bombear o vírus. Algumas dessas células morrem por liberar muitos vírus. Algumas morrem por liberar pouco vírus e enganar o sistema imunológico. Além disso, quando o vírus sai da célula ele se torna bastante variável. Então, você tem uma infecção persistente devido à integração do gene. Múltiplos vírus se espalham pelo corpo nos estágios iniciais, anulando o controle do sistema imunológico.
Desde o isolamento do vírus, quais foram os principais avanços na luta contra a doença?
Tivemos importantes avanços da medicina nos últimos 24 anos, em nível prático. Em 1984, surgiu o teste de detecção de HIV no sangue, que tornou o suprimento sangüíneo seguro. A técnica permitiu que a epidemia fosse monitorada desde o início. Outro progresso, em 1986, marcou o início do tratamento contra o HIV: o AZT. Não era uma droga muito. Não por causa de sua alta toxicidade, mas por causa da baixa eficiência quando usada de modo isolado. O AZT mostrou que a indústria farmacêutica era capaz de lidar com a infecção. Em 1995, desenvolvemos os inibidores de protease, que se uniram aos inibidores da transcrição reversa do HIV. Surgiu então o coquetel, um grande avanço que acrescentou muitos anos à sobrevida dos pacientes. Fomos bem-sucedidos em gerenciar esses compostos químicos para impedir a transmissão de mães para bebês. Não sei sobre o Brasil, mas nos Estados Unidos e na Europa a Aids entre as crianças foi praticamente extinta. Podemos praticamente prevenir a transmissão vertical da doença, tratando o bebê com os medicamentos e proibindo a amamentação.
E as promessas para os próximos anos?
Temos mais terapias-alvos. Por exemplo, temos técnicas que bloqueiam a integração do gene viral ao DNA do cromossomo humano. Elas se mostraram muito poderosas e pude ver que os resultados têm sido tremendos. Outras promessas são as pesquisas básicas, com as quais compreendemos como o HIV mata as células. Isso nos dará a capacidade de criarmos um grande número de tratamentos para bloquear a entrada do HIV no organismo, além de novas drogas.
Alguns insistem que a cura da Aids não seria interessante para os laboratórios, pois a produção de remédios movimenta muito dinheiro%u2026
Acredite%u2026 Isso é ridículo. Quando você ouve coisas assim, é como afirmações de que os judeus explodiram o World Trade Center para culpar os árabes. Isso é uma besteira. A indústria farmacêutica não pode fazer isso. Vou lhe dizer o porquê. Essas empresas têm centenas, senão milhares de funcionários. Essas pessoas falam e jamais guardariam segredo. Quando você perde seu emprego, conta para todo mundo. A Aids é um problema que impõe uma terrível pressão por parte dos ativistas e de países pobres. As indústrias preferem se livrar desse fardo.
Quando o senhor e Montagnier isolaram o HIV, imaginaram que o vírus seria tão letal?
Sim, porque já havíamos estudado o caso de infecção em um paciente e vimos como a doença era grave. Sabíamos que o vírus era muito letal. Mas não sabíamos a causa da Aids até 1984. Se você me perguntar se eu esperava que o HIV se disseminaria tão rápido e facilmente, qualquer cientista diria que não. Não podíamos saber que o problema se tornaria global. Em 1984, descobrimos que 38 pessoas estavam com Aids, depois de analisarmos centenas e centenas de amostras de sangue.
Como e quando o vírus HIV surgiu na natureza?
Um precursor do HIV se hospedava em macacos no continente africano. Esses macacos teriam cruzado com um tipo muito particular de chimpanzé na África Equatorial. Foi assim que surgiu o HIV-1. Acreditamos que caçadores tenham se infectado ao retirar a pele dos animais. A propósito, tal forma de infecção ainda ocorre atualmente. Algumas das células do vírus nesses macacos ; não todas ; foram capazes de migrar para humanos. O HIV começou a ;viajar; em 1950 e tornou-se epidêmico na década seguinte, ao alcançar áreas urbanas da África. Daí atingiu os Estados Unidos e a Europa no início dos anos 1970.
Como o senhor vê o papel do Brasil na campanha contra a Aids?
O Brasil se importa ; e muito ; com o vírus da Aids e se preocupa em prover tratamento à população carente. O HIV sofre várias mutações e, por isso, se torna tão resistente às drogas. O Brasil é um dos países úteis na luta contra a Aids por não esquecer os pobres.