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Entrevista: de La Paz, Gonzalo Rojas fala dos referendos por autonomia

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postado em 03/06/2008 17:38

Os bolivianos dos departamentos de Beni e Pando (norte do país, fronteira com o Brasil), aprovaram no domingo, em referendos populares, o estatuto de autonomia política e econômica regional. Nas duas regiões, o "sim" venceu com mais de 80% dos votos. No entanto, muitos eleitores não foram votar: em Beni, houve 34,5% de ausentes e em Pando, 46,5%.

Dos nove departamentos do país, quatro desafiam o poder central do presidente Evo Morales. Antes de Beni e Pando, Santa Cruz aprovou seu estatuto autonômico com 85%, há um mês. No próximo dia 22 será a vez de Tarija, no sul. Os referendos de autonomia não têm aval da Corte Nacional Eleitoral, que os considera ilegais e não validará os resultados, proclamados pelas cortes eleitorais regionais.


Para tentar resolver a crise política, Morales aceitou que o Parlamento convoque, para 10 de agosto, um referendo para confirmar se ele continua ou não no poder. Ao mesmo tempo, iniciou o diálogo com cinco governadores. Esse processo terá a participação de quatro enviados internacionais: o diplomata Enio Cordeiro (Brasil), Camilo Reyes (Colombia), Guillermo Hunt (Argentina) e um representante da Organização dos Estados Americanos (OEA), Raúl Alconada.


O governador de Beni, Ernesto Suárez, disse no domingo que "autonomia não é divisão, muito menos separação". A polêmica sobre as reivindicações regionalistas se concentra na distribuição dos recursos públicos, principalmente os obtidos com petróleo e gás. Os governadores que defendem a autonomia consideram que a distribuição será mais efetiva. Os partidários de Morales argumentam que ela reforçará a divisão entre a Bolívia próspera, do leste (departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando), e a do oeste, onde vive a maioria da população indígena (departamentos de La Paz, Oruro, Potosi, Chuquisaca e Cochabamba).


O estatuto autonômico de Santa Cruz prevê que 50% da arrecadação vá para os departamentos produtores, 40% para os que não produzem e 10% para as comunidades indígenas. Hoje, Santa Cruz recebe cerca de 11% , porque a arrecadação é dividida entre os nove departamentos.


Para o coordenador da Pós-graduação em Ciência e Desenvolvimento da Universidade Mayor de San Andrés, Gonzalo Rojas, "há pouca solidariedade fiscal nesse tipo de proposta", e os políticos bolivianos têm grande dificuldade em encontrar uma proposta que seja "mais compatível com o Estado unitário, com a própria história da Bolívia, que tentou construir um Estado nacional". Ele considera que o processo das autonomias foi exacerbado e polarizado por ambas partes, que não caminham para uma visão política equilibrada, capaz de contemplar o conceito de "nação boliviana".

ENTREVISTA

O coordenador de Pesquisa da Pós-graduação de Ciência e Desenvolvimento da Universidade Mayor de Santo Andrés, Gonzalo Rojas, deu uma entrevista ao Correio, por telefone, em La Paz, sobre o atual processo de referendos por uma maior autonomia nos departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, que desafiam o poder central do presidente Evo Morales.

Qual é o cenário de fundo deste processo?
Desde a criação da República e antes, há na Bolívia um tema crucial de discussão e de definição política, que trata da propriedade, o uso e usufruto dos recursos naturais, em um país de longa tradição de mineração, e no século XX, também petrolífera, e sobretudo agora, o gás. Ao redor disso, há uma enorme disputa, historicamente, rural, com um forte componente indígena, e também uma disputa sobre a terra. A reforma agrária atuou na repartição de terras no Altiplano e nos Vales do país, mas o lado onde justamente estão sendo feitos os referendos, foi pensado como pólo de desenvolvimento agro-industrial e algo disso se concretizou, sobretudo em Santa Cruz. Então, há um fundo histórico importante, mas o que está acontecendo agora são reações no limite da legalidade , porque nossa atual constituição vigente não reconhece a autonomia, mas a nova sim, de uma maneira muito diluída, porque está querendo se contrapor ao poder agro-industrial e a uma certa tecnoburocracia associada às transnacionais -principalmente em Tarija e Santa Cruz.

É verdade que o governo central é quem decide sobre a nomeação de professores e médicos nos departamentos?
Houve um processo de descentralização na Bolívia antes. Em 1994, um processo profundo de descentralização municipal e no âmbito departamental, há uma gestão compartilhada em saúde e educação. Então aí também há muito de retórica contra o centralismo andino, digamos. O presidente Mesa publicou suas memórias e deixa constância, por exemplo, de como a administração em temas de terra esteve sucessivamente em mãos de ministros que eram nitidamente homens que vinham da agro-indústria crucenha, sem exceção. Estamos falando dos finais dos 80. E nos 70 tivemos o governo de Banzer, militar de Santa Cruz que também deu impulso ao desenvolvimento crucenho. Podemos dizer que desde 1952, houve uma transferência sistemática de recursos públicos a um pool de desenvolvimento para estas regiões, que também seguiu por via privada, por empréstimos bancários. Há, efetivamente, razões pelas quais se possa pedir a esta região, que é hoje uma das mais prósperas, uma certa solidariedade com o resto do país.

O estatuto autonômico de Santa Cruz prevê que 50% da arrecadação vá para os departamentos produtores de recursos, 40% para os que não produzem e 10% para as comunidades indígenas. Parece-me um pouco estranho que um departamento produtor queira tanto para si e compartilhe pouco com os demais;

Por isso é tão freqüente o qualitativo de ser uma proposta oligárquica e egoísta, separatista, porque efetivamente, há pouca solidariedade fiscal neste tipo de proposta. Agora, também há que se dizer que é um pensamento que se exacerbou nos últimos anos. Em nenhum momento fizeram uma proposta mais interessante, mais compatível com o estado unitário, além disso, com a própria história da Bolívia, que tentou construir um estado nacional e portanto, ocupável, espacial e economicamente. Mas também a nova proposta de constituição se excedeu. Por exemplo, a palavra, o conceito de nação boliviana não existe. O que existe aí é o Estado boliviano, estado multinacional boliviano e quando fala da população, em termos culturais, se refere às comunidades indígenas originárias campesinas e à população pluricultural ou intercultural, para referir-se a todo o restante, que não é pouco em Bolívia, que é também mestiço.

Como o senhor vê o processo de diálogo proposto por Evo Morales aos governadores (prefectos)dos departamentos, que será observado por enviados internacionais?
A saída deste problemas virá por meio do diálogo, pela concertação. O problema é que a própria constituinte falhou em grande medida, porque houve um boicote da oposição, isto está claro, mas também porque o governo excedeu com suas próprias atribuições da nova constituição sem a participação da principal oposição. Aí se juntaram as velhas tradições da cultura política de nossos países, em particular da Bolívia, que há tentações autoritárias.

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