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Reféns libertados pela guerrilha colombiana contam ao Correio a rotina no cativeiro

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postado em 06/07/2008 09:55
A partir das 17h, quando a escuridão tomava conta da floresta colombiana, eles travavam uma batalha interna de sentimentos. A saudade, a aflição e a incerteza se somavam ao medo provocado pelo barulho que vinha da selva. Ex-reféns das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) contaram o horror que passaram sob a mira de armas 24 horas por dia, alguns deles acorrentados, tratados como animais e submetidos a uma tortura psicológica sem fim. Praticamente esquecidos em um mundo particular, enquanto aguardavam um milagre, na forma de uma libertação unilateral ou do pagamento de resgate. Pelo menos 700 pessoas ainda estão em poder do grupo, das quais 25 têm peso político e podem ser usadas como moeda de troca por alguns dos 1.605 guerrilheiros presos em penitenciárias do país. O ex-congressista Luis Eladio Pérez, de 55 anos, se despediu da ex-senadora Ingrid Betancourt em 4 de fevereiro passado, 23 dias antes de ganhar a liberdade (leia a entrevista nesta página). Sua vida mudou em 10 de junho de 2001, após ser capturado pelos rebeldes no departamento (estado) de Nariño. Por seis anos, sete meses e 18 dias, ele foi forçado a abandonar a mulher, Angela, os filhos Sérgio e Carolina, e a se readaptar a uma rotina desesperadora em um dos acampamentos das Farc. ;Por cinco anos, fomos acorrentados 24 horas por dia, algumas vezes a árvores, outras vezes aos próprios reféns;, disse ao Correio o homem que se tornou uma espécie de confidente de Ingrid no cativeiro. Nos últimos oito meses de cárcere, Pérez foi amarrado a uma árvore com Tom Howes, um dos três americanos soltos na quarta-feira. ;Éramos tratados como selvagens, como animais;, comentou. A rotina no acampamento começava entre as 4h30 e as 5h, quando os guerrilheiros ordenavam que os seqüestrados se levantassem. ;Tiravam nossas correntes e nos davam meia hora para que fizéssemos nossas necessidades. Depois, éramos acorrentados novamente;, lembra. Tudo sob a mira de um fuzil ou metralhadora. Pela manhã, seqüestrados e rebeldes compartilhavam um rádio a pilha, por meio do qual os reféns ouviam suas famílias e se atualizavam com o noticiário. Esse era o único contato com o mundo externo. Os guerrilheiros transferiam os seqüestrados com freqüência, para despistar o Exército. ;Por vários meses caminhei sem botas. Você pode imaginar o tipo de enfermidade a que estávamos submetidos;, disse Luis Eladio Pérez. Questionado se testemunhou violência no cativeiro, o ex-senador foi enfático: ;Existe maior violência do que estar como um animal acorrentado, do que ter um guerrilheiro o insultando? Sofri alterações emocionais muito fortes;, comentou. Segundo ele, muitos reféns não conheciam um Ipod, jamais viram DVD e sequer sabiam que um celular tira fotos. Pérez precisou de apoio psicológico para se readaptar à civilização. ;Felizmente, tive a compreensão e o carinho de minha família.; Livros e xadrez A vida do economista colombiano Aníbal Rodríguez, de 52 anos, sofreu uma pausa em 26 de julho de 2001. Morador de Neiva, capital do departamento de Huila (centro-sul), ele foi vítima de um seqüestro extorsivo, quando as Farc invadiram o edifício Miraflores. No cativeiro, ele acordava às 5h, quando era servido o café-da-manhã, e passava o início do dia entretido com a leitura. Às 9h, os seqüestrados se banhavam em rios próximos ; as Farc erguem acampamentos perto de mananciais de água. ;O almoço era servido às 11h30 e passávamos a tarde jogando xadrez ou cartas, ou fazendo artesanato em madeira. Às 18h, éramos obrigados a ir para a cama;, lembra Rodríguez. A noite era imersa na escuridão. Por razões de segurança o uso de lampiões estava proibido. ;Dormíamos em tendas de plástico, sobre camas feitas com troncos ;, relatou. ;Os guardas se colocavam armados ao nosso lado à noite.; Sob essas condições os dias são compridos. ;A rotina é desesperadora.; Assim como Luis Eladio Pérez e Aníbal Rodríguez, a ex-senadora Ingrid Betancourt levará para sempre as recordações do inferno. Memórias de um tempo em que a liberdade era apenas uma centelha de esperança.
Entrevista - Luis Eladio Pérez Bonilla ;Lula precisa assumir uma posição definida; Ele foi confidente de Ingrid Betancourt durante os seis anos de cativeiro. Em 20 de julho de 2005, investiu em uma fuga fracassada com a ex-senadora. Foram cinco dias de caminho pela mata, até que os guerrilheiros os encontraram. Em entrevista ao Correio, por telefone, de Bogotá, o ex-senador Luis Eladio Pérez defendeu o pagamento de resgate em troca de seqüestrados e acusou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ;indefinição; em relação ao conflito na Colômbia. Que impacto a libertação de Ingrid teve nas Farc? Sem dúvida as Farc estão em estado terminal. A cúpula da guerrilha entrará em um processo de desmoronamento, com a troca de acusações entre os membros do secretariado e entre as duas vertentes das Farc, a ala política e a ala militar. Espero que Ingrid tenha um papel importante nesse processo. Sem dúvida, ela tem a capacidade de buscar um processo de paz significativo para a Colômbia e seu futuro. Ingrid defendeu uma aliança internacional nesse contexto. Como o Brasil pode contribuir? Todos os esforços que contribuam com uma cruzada mundial contra o terrorismo são bem-vindos. Sem dúvida, os países vizinhos, principalmente Equador e Venezuela, têm sido co-participantes dessa tragédia, porque seus territórios têm vivido experiências bastante frustrantes. Eles vão desempenhar um papel fundamental no futuro. O Brasil pode exercer uma função relevante, à medida que o presidente Lula assuma uma posição definida. Parte do problema que temos com o Brasil é que Lula não se definiu sobre o tema da Colômbia. No início de seu primeiro governo, quando Lula exercia uma liderança na América Latina, havia muita esperança. Pensávamos que Lula pudesse ser um catalisador, um grande defensor da construção de uma grande democracia no continente. Lula deixou as oportunidades passarem e cedeu espaço para o presidente (Hugo) Chávez (da Venezuela). Espero que Lula possa retomar esse caminho, que seria muito importante para a sorte da Colômbia e da América Latina. O senhor crê que o presidente Uribe tenha comprado a libertação de Ingrid por US$ 20 milhões? Se o governo francês, se o governo colombiano, se o governo norte-americano ou qualquer governo comprou, me parece perfeito! Se tivesse sido por US$ 20 milhões, por US$ 100 milhões, o valor que fosse, me pareceria perfeito! O que está em jogo é salvar vidas humanas. Não importa o preço, não importa a forma, nem como. O importante é salvar vidas. Um país que não defendesse um só de seus cidadãos não mereceria um líder. De modo que, mais uma vez reitero, não tenho a menor idéia. Mas se assim foi, felicito a França, os Estados Unidos ou a Colômbia por terem pago esse resgate. Mas o senhor esperava que Ingrid fosse libertada por esses dias? Tive uma informação de uma fonte bastante crível na Europa, há 15 dias, de que as Farc estavam deslocando seqüestrados. E que a guerrilha faria uma libertação unilateral de um ou dois reféns. A operação do governo colombiano e do Exército foi muito bem-sucedida, pois descartou qualquer possibilidade de que isso ocorresse. Não tínhamos idéia de quem se tratava. O importante era que pudéssemos recobrar a liberdade de seqüestrados para seguir com o processo que levaria à libertação de todos. Causou-lhe surpresa o estado de saúde da ex-senadora? O senhor disse que ela parecia muito fraca, quando a viu na selva, em 4 de fevereiro%u2026 Ingrid está muitíssimo melhor. Parte dessa melhora se deve, sem dúvida, às análises feitas a distância de sua situação de saúde. Os guerrilheiros fizeram com que ela melhorasse. (RC) Ouça a íntegra da entrevista:

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