postado em 09/07/2008 19:44
Na segunda parte da entrevista exclusiva a Agência Brasil e TV Brasil, Clara Rojas - ex-refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) libertada em fevereiro passado após seis anos de cativeiro - diz que sempre fez o possível para não arrumar encrenca com os guerrilheiros e nunca sofreu maus-tratos, ao contrário de alguns colegas de infortúnio que eram acorrentados. Emocionada, ela conta o sofrimento causado pela monotonia e pelo silêncio. Recorda ainda ter negociado com seus algozes um mínimo de privacidade para ir ao banheiro. Fala também no primeiro dia de liberdade, quando não queria saber de sair debaixo do chuveiro, mesmo sabendo que era esperada por um grupo de jornalistas.
Como as Farc tratam os reféns? Ingrid disse que vocês foram tratados como "porcos".
Clara Rojas - Acho que a situação do grupo em que ela estava era diferente, parece-me que havia muita tensão com o comandante. No nosso caso, como o comandante tomou a decisão de ficar mais isolado, não houve tanta tensão. Nós, e particularmente eu, não quisemos criar problema com o guarda que nos trazia comida. Isso fez a relação ser mais tranqüila. Minha única inquietação era saber sobre o estado do meu filho. E o pobre [do guarda] ficava calado. Digo o pobre porque a decisão não dependia dele, ele vivia a angústia que eu vivia. E dizia: Clara, não se preocupe, um dia vão te devolver [a criança].
Você não sofreu maus-tratos?
Clara - Não. Obviamente ficamos muito isolados, numa situação muito precária de recursos, mas são coisas diferentes. Então, resolveram nos isolar um pouco, mas pessoas que estavam comigo tiveram de usar correntes. Mas nunca me bateram.
Como é a vida no interior da selva?
Clara - Muito difícil, porque você fica muito isolado. É preciso muita força para não se desesperar. Todos os dias são iguais... Essa ruptura com o meio exterior é muito difícil, porque quando a pessoa tem dor, tende a se introverter. A rotina é a mesma. Há tanto silêncio, só se escuta os barulhos da selva, é dramático. A vida é muito dura, monótona.
A psicóloga Olga Lucía Gómez, diretora da Fundação País Livre, disse que exatamente por causa dessa rotina diferente, monótona e dura, os reféns criam couraças e se espiritualizam, desenvolvendo até uma personalidade diferente.
Clara - Sofri duas mudanças. Quando me seqüestraram, deixei um ambiente como este [aponta para a sala confortável do hotel onde a entrevista foi realizada] para dormir quase no chão, com chuva e animais. Outro problema é a falta de banheiro.
Não havia banheiro?
Clara - Não. Você chega e eles fazem um buraquinho no chão. Então, pedi uma cortininha para ter meu espaço, um mínimo de intimidade. Dizia que não ia fugir, porque os guardas ficam em cima o tempo todo. Isso também depende de cada um. Eu insisti, e me respeitaram.
Como é a readaptação após passar anos confinada na selva?
Clara - É mais fácil [a readaptação], porque a pessoa volta para o que já conhece. Quando cheguei Venezuela, fiquei muito feliz por poder tomar um banho com água quente, toalhas limpas... É a limpeza que a gente sempre quer. Tanto que, no primeiro dia, entrei no banho e não queria sair mais (risos). E me diziam: Rápido que temos entrevista. Eu disse: Sim, eu quero dar entrevista, mas me deixem aqui mais um pouco. Custei um pouco para começar a falar, isso tenho que confessar. Mas a ducha me fez sentir que estava bem e precisava ver meu filho. Outra coisa que eu não esperava era sair e encontrar uma sala cheia de jornalistas. Mas quando você começa a falar, já se acalma um pouco. O regresso vida normal tem sido fascinante. Primeiro, porque queria rever meu filho; segundo, porque sou consciente de que para ele estar bem também preciso estar bem. Por isso, apressei-me em organizar minha casa e isso já fiz. Ele passou esses três meses no jardim de infância e no próximo semestre vai escola.
As pessoas lhe reconhecem na rua?
Clara - Na hora! A primeira viagem que fiz foi para a Espanha. Foi muito estimulante saber que as pessoas viveram comigo o que eu tinha vivido. Isso me ajuda a seguir melhorando. A primeira reação de um seqüestrado é se isolar. Então, para mim, foi terapêutico esse contato com a realidade, com minha família, com vocês, com todos os meios de comunicação.
Como foi a volta família?
Clara - Foi boa, mas te digo uma coisa: sempre fui independente, não vivia com nenhum parente, então [na volta] não precisei negociar quem ia cuidar disso ou daquilo. É uma relação mais fácil, nesse ponto tive sorte.
O cativeiro te deixou mais espiritualizada?
Clara - No cativeiro, você não tem com quem conversar. Aí, resta implorar ao Todo-Poderoso e Virgem Maria, qual sou muito devota. Digamos que houve um fortalecimento. Eu nunca fiz muito drama sobre por que fui parar lá. Uma vez que estava lá, eu pedia a Deus que me ajudasse a suportar aquilo e desse tranqüilidade ao meu filho para ele obter a liberdade. Isso foi me fortalecendo. Além de ouvir a rádio brasileira, eu ouvia a Rádio Católica Mundial e acompanhei a visita do papa a Aparecida [do Norte], que me encantou.
Você algum dia imaginou que ficaria seis anos presa?
Clara - Que nada, pensei que ficaria um mês. Imagina que ingênua! No começo, não achei que iam me levar, estava mais preocupada com Ingrid [Betancourt]. Quando nos fizeram passar a primeira noite juntas, pensei: Minha cruz.... Mas ainda assim, achei que poderiam me soltar, porque não tinha o mesmo peso político da Ingrid. E nada... E passou um ano. E nada... E com o passar do tempo, fui me angustiando e pensando: Quando será [que me libertarão]?. Você nunca imagina que pode durar tanto... E os guerrilheiros diziam: Se estamos cuidando de você, dando comida. Com o que se preocupa?. Eles são o que as pessoas chamam de guerrilheiros a pé. São muito simples, não tiveram a oportunidade de conhecer outras coisas. Eles brindam pela comida e por estar lá, pois acham que é tudo que existe e que estamos bem.
Você recebia solidariedade das mulheres das Farc?
Clara - Só por causa do Emmanuel [o filho]. São umas mulheres tenazes (risos), na forma física, no trato, iguais aos homens. Achei isso estranho. Quando meu filho chegou, o coração delas amoleceu um pouco. Fui isolada do grupo e dependia de algumas mulheres que cuidavam de mim e dele, porque eu não podia me mexer na cama.
Você tem notícias da Consuelo González [parlamentar também libertada na Operação Emmanuel], tem contato com ela?
Clara - Muito pouco. Sei que tem alguns problemas de saúde, algo no coração. Na última vez que conversamos, ela disse que precisava cuidar disso.
Lembranças daquele tempo vêem mente?
Clara - Não. Quer dizer, s vezes acordo no meio da noite e penso nas pessoas que ainda estão lá. Aí corro e ligo para elas, porque das 5 horas s 6 horas da manhã dá pra falar com elas pelo programa de rádio. E eu digo: Já estou livre, mas estamos vendo um jeito de libertar vocês. Não uso muito [este artifício] porque o programa é para os parentes, mas acho bom falar com eles para mostrar que estão a um passinho da liberdade.
Como está a saúde?
Clara - Estou quase bem, recuperando-me de uma operação. Não posso fazer exercício e nem esforço, mas em dois meses estarei bem.
É algo referente gravidez?
Clara - É que quando iniciaram a cesariana na selva, algo deu errado e tive que reconstruir [o local da operação]. Foi feita com instrumentos muito rudimentares. Além de uns problemas estomacais. Tive que tirar a vesícula. Mas já me recuperei bem. Duas semanas atrás, eu estava na cama e não podia me mexer.
E psicologicamente?
Clara - O que você acha, como me vê?
Muito bem....
Clara - Em geral, estou bem. Às vezes, sinto-me agoniada, porque há muitas coisas para resolver, coisas da família... Mas tento ir com calma. Fiz uma listinha e vou resolvendo uma a uma.