Jornal Correio Braziliense

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Entenda as relações entre o serviço secreto do Paquistão e o extremismo

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A história do extremismo islâmico no Paquistão e no Afeganistão se cruza repetidamente com a trajetória do sombrio serviço secreto paquistanês, o Inter Service Intelligence, conhecido e temido pela sigla ISI. Nas décadas de turbulência e guerra que se seguiram à ocupação do território afegão por tropas da extinta União Soviética, em socorro ao insustável regime comunista local, operações do ISI, com a colaboração direta ou a conivência tácita da CIA norte-americana, transformaram cenário político e militar da região em um caleidoscópio ; sempre pronto a iludir os forasteiros. A invasão soviética, no fim de 1979, coincidiu com um momento de influência política do ISI, sob a ditadura do general Zia Ul-Hak. Ele acabava de mandar executar o ex-premiê Zulfikar Ali Bhutto, a quem havia derrubado anos antes. Bhutto, um político com raízes na elite comercial xiita nucleada em Karachi. Minoritários no Paquistão, como na maior parte do mundo islâmico, os xiitas se tornaram defensores do Estado laico, escudo contra a opressão da maioria sunita. Zia Ul-Hak, sunita como o grosso da tropa e do comando militar, promoveu uma política de ;islamização;. E vislumbrou no Afeganistão a oportunidade de se atrelar aos Estados Unidos, um anteparo firme contra a superioridade bélica da vizinha e rival Índia. Convidou o governo de Ronald Reagan, um anticomunista com espírito de cruzado medieval, a fazer do Paquistão campo de treinamento e base de abastecimento para os mujahedin (combatentes), guerrilheiros afegãos que combatiam em nome do islã a ocupação soviética. A CIA assumiu a missão de armar e treinar os mujahedin, e o ISI se tornou seu elo indispensável com um universo étnico e religioso impenetrável. Foi provavelmente nas bases instaladas na região de Peshawar que os agentes americanos e paquistaneses iniciaram no manejo dos Stinger, mísseis antiaéreos ;de ombro; que infernizaram os helicópteros soviéticos, gente como Osama bin Laden. Na época, o atual líder da rede terrorista da Al-Qaeda, até hoje foragido nessa região, era admirado como um jovem milionário saudita devotado e altruísta. Concluída a retirada soviética, em 1989, os mujahedin precisaram de mais três anos para derrubar o regime pró-Moscou, mas se engalfinharam em uma guerra civil que reduziu a ruínas a capital e o governo central. O vácuo político-militar foi ocupado a partir de l994 por uma nova milícia religiosa, os talibãs (estudantes), formada por alunos de escolas corânicas montadas no Paquistão ; com dinheiro e orientação religiosa da Arábia Saudita ; para os filhos dos mujahedin e dos refugiados afegãos. Com treinamento, equipamento e comando de campo providos inicialmente pelo ISI, os talibãs marcharam sobre Cabul em 1996. Dois anos mais tarde, encurralavam no norte e noroeste do país os últimos bolsões de resistência dos velhos mujahedin, contando com a ajuda da legião árabe comandada por Bin Laden. A essa altura, o saudita já comandava a Al-Qaeda em uma contracruzada para expulsar da Arábia e do mundo islâmico os ;infiéis; americanos e europeus. À sombra dos talibãs e do ISI, Bin Laden planejou os atentados de onze de setembro, treinou e orientou seus executores. A invasão do Afeganistão pelos EUA, em resposta aos ataques, desmontou temporariamente o triângulo, mas o vértice paquistanês seguiu em atividade. O ISI seguiu jogando a carta do extremismo islâmico por meio dos grupos aparentados ao talibã na região fronteiriça. Ao longo de uma década no poder, o general-presidente Pervez Musharraf fez uma política de conter o terrorismo ora pela pressão militar, ora por meio de acordos secretos mediados pelo ISI ; sempre em troca da estabilidade. O jogo saiu de controle, porém, quando extremistas assassinaram no início do ano a ex-premiê Benazir Bhutto, filha e herdeira política de Zulfikar Ali Bhutto. Recém-retornada do exílio, ela se reconciliara com Musharraf para retornar ao cenário político do país, possivelmente outra vez como chefe de governo. Na esteira do assassinato, sobre o qual pesa a suspeita de cooperação do ISI, Musharraf foi levado à renúncia. E o novo presidente é o inexpressivo viúvo de Benazir, Asif Ali Zardari, que mais uma vez se apresenta à colaboração com os EUA ; agora, contra a Al-Qaeda e os talibãs ; como meio de sobreviver às conexões sombrias entre o serviço secreto e os extremistas, seus inimigos jurados.