postado em 15/02/2009 08:29
Desempregada, solteira, seis filhos com idades entre 2 e 7 anos. Nada disso impediu Nadya Suleman, de 33 anos, de tentar uma nova gestação. Após recorrer a uma clÃnica de fertilização em Beverly Hills, na Califórnia, a norte-americana deu à luz óctuplos, seis meninos e duas meninas. Com os oito bebês, vieram acusações de que a mãe estaria buscando fama e dinheiro. Com a ajuda de uma empresa, ela inaugurou um site de internet para arrecadar doações. Desde o parto, em 26 de janeiro passado, Nadya atraiu a ira popular, recebeu ameaças de morte por e-mail e pelo telefone e foi obrigada a se esconder.
O caso também aguçou a polêmica sobre o tema da reprodução assistida. Bioéticos e médicos consultados pelo Correio foram unânimes em condenar a falta de legislação sobre a técnica nos Estados Unidos e o comportamento da mãe dos óctuplos. Segundo eles, os programas de fertilização precisam atender a uma série de critérios que levem em conta o bem-estar dos recém-nascidos.
O cipriota Panayiotis Zavos, professor de medicina reprodutiva e diretor do Instituto de Andrologia dos Estados Unidos, explica que o paÃs não possui leis que coÃbam mulheres sem condições financeiras de usarem a reprodução assistida para terem vários filhos. ;O Congresso norte-americano poderia votar alguma legislação para prevenir incidentes desse tipo;, comenta. No Reino Unido, a Lei de Embriologia e Fertilização Humana tornou-se uma autoridade reguladora para a tecnologia de reprodução assistida e condicionou os serviços médicos ao bem-estar da criança. ;Essa área é muito difÃcil e sensÃvel, principalmente pelo fato de os pacientes terem liberdade para processar médicos que se negarem a fornecer o tratamento;, acrescenta.
Por trás da reprodução assistida, estão complexas questões culturais. Apesar de as gestações múltiplas apresentarem um maior risco de morte para os recém-nascidos e deficiências a longo prazo, inclusive paralisia cerebral, Zavos revela que muitos casais ainda buscam ter mais de dois filhos em uma única gravidez. ;Esse comportamento parece se basear em razões financeiras ou no princÃpio de ;pagar dois pelo preço de um;;, afirma o cipriota. Um recente estudo da Universidade de Iowa revelou que uma em cada cinco mulheres procura especialistas em infertilidade com o objetivo de ter um único filho.
As chances de gravidez múltipla na reprodução assistida são maiores porque os médicos podem implantar mais de um embrião no útero. Alguns estados norte-americanos não limitam o número de embriões a serem transferidos. ;Sob condições naturais, a incidência de gestação gemelar é muito pequena, pois uma mulher libera um único óvulo por ciclo e, por isso, a possibilidade de gravidez múltipla é controlada pelo próprio organismo;, explica Zavos.
Avaliação
De acordo com Arthur Caplan, professor de bioética da Universidade de Pensilvânia, todos os especialistas têm a obrigação de determinar o motivo pelo qual as pacientes buscam tratamento, além de avaliarem o grau e a causa da infertilidade. ;Os médicos precisam seguir critérios básicos ao decidirem aceitar uma paciente, incluindo avaliação psicológica, pesquisa financeira para determinar se ela tem condições de sustentar um filho e apuração da ficha criminal;, afirma. Ele não apoia a discriminação no interior das clÃnicas, mas defende que os interesses da criança gerada se sobreponham a quaisquer considerações. ;É preciso uma discussão sobre como a gestação múltipla será administrada, inclusive os riscos de redução fetal;, diz.
O bioético recomenda que, caso a paciente tenha mais de 45 anos, o médico exija uma terceira pessoa que terá a incumbência de criar a criança, em caso de invalidez ou morte da mãe. Além disso, o especialista tem de abrir uma discussão franca sobre o destino dos embriões descartados. ;Como não existem leis para a fertilização, fazer duras interrogações para proteger os interesses da criança é uma obrigação do médico e uma questão ética;, aconselha. Caplan acredita que Nadya Suleman, a mãe dos óctuplos norte-americanos, está mentalmente instável. ;A questão é saber como ela se tornou uma paciente, tendo seis outras crianças, sem um lar, sem dinheiro, sem um parceiro e sem a aprovação dos próprios pais.;
No Brasil, norma limita implante de embriões
;A equipe de profissionais que atendeu Nadya Suleman não deveria se vangloriar do que fez e obteve. Deveria até se envergonhar;, afirma Dirceu Henrique Mendes Pereira, vice-presidente da Comissão de Reprodução Assistida da Federação Brasileira de Ginecologia e ObstetrÃcia (Febrasgo), referindo-se à clÃnica do médico Michael M. Kamrava, em Beverly Hills. Segundo ele, a gestação múltipla é um flagelo para a mãe.
Para evitar casos como o de Nadya, os médicos brasileiros reportam as transferências de embriões para a Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida (Lara). No paÃs, a técnica de fertilização está regida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). ;A norma, de 1993, permite implantarmos no máximo quatro embriões, e deveria ser revista;, comenta Dirceu.
O alerta à paciente é praxe obrigatória no Brasil. ;Ela tem de estar consciente dos riscos. Por isso, a nossa prática hoje é cada vez transferir menos embriões;, admite. O vice-presidente da Febrasgo revela que mulheres que passaram por cinco ou seis ciclos sem sucesso acabam pedindo ao médico para implantarem vários embriões. ;Temos uma norma e recusamos esses pedidos;, afirma Dirceu. De acordo com ele, em pacientes jovens, o ideal é transferir até dois embriões. Para mulheres com mais de 40 anos, pode-se implantar até quatro.
O bioético Volnei Garrafa, coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Bioética da Universidade de BrasÃlia (UnB), denuncia ;uma omissão legislativa criminosa no Brasil;. Ele lembra que o primeiro bebê de proveta brasileiro nasceu em 1984 e o Congresso brasileiro ainda não votou uma lei sequer sobre o assunto. Outra questão preocupante é a inexistência de um Conselho Nacional de Bioética. Órgãos do gênero existem em todos os paÃses da Comunidade Europeia ; a França, com o presidente François Miterrand, foi a pioneira em 1982. ;Esses conselhos, pluralistas e multidisciplinares em sua formação, agilizam o debate sobre temas polêmicos no campo biocientÃfico, facilitando ao Executivo o envio de mensagens moralmente espinhosas ao Legislativo;, afirma Garrafa.
Ouça: o médico Dirceu Henrique fala sobre os limites éticos para a reprodução assistida: