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Entrevista: bioético denuncia omissão legislativa criminosa no Brasil

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postado em 16/02/2009 09:30
Em entrevista ao Correio, Volnei Garrafa -- coordenador da Cátedra Unesco e do Programa de Mestrado e Doutorado em Bioética da Universidade de Brasília (UnB) -- criticou a falta de legislação sobre reprodução assistida no Brasil e comentou sobre os limites éticos da fertilização em clínicas especializadas.

Volnei GarrafaNa sua opinião, qual o limite ético da reprodução assistida? O médico precisa falar com a paciente e deixá-la a par da possibilidade de gravidez múltipla?
O limite do desenvolvimento científico e tecnológico nesta altura do século não é mais técnico; é ético. Portanto, nem tudo que pode ser feito deve ser feito. O estudo metodizado destes limites éticos é chamado de "ética aplicada", "bioética". Muitas vezes o que determina o limite ético -- além do posicionamento pessoal-moral das pessoas envolvidas, no caso da reprodução assistida: o médico e a mulher ou o casal -- é a legislação de cada país. De qualquer modo, neste caso específico ocorrido nos Estados Unidos, como a mulher teve óctuplos, é óbvio que um mínimo de oito (8)(!) embriões foram implantados no seu útero. Mas é bem possível que o número tenha sido maior. Em geral, a maioria dos embriões sucumbe nessa operação. No Reino Unido, que é rigoroso com o controle e o uso de novas tecnologias reprodutivas, o limite de inclusão é de somente dois embriões no útero da mulher e está discutindo a possibilidade de diminuir para um. Ou seja, a operação só é realizada quando existe segurança de sucesso técnico e científico, estreitando o espaço para as "probabilidades de sucesso terapêutico". No caso norte-americano, para ter uma maior probabilidade de sucesso terapêutico, o médico deu um verdadeiro "tiro de canhão" nessa mãe, que poderia ter sido cientificada ou não de todo o processo. Não tenho essa informação, tampouco sobre qual o limite de embriões que a legislação dos Estados Unidos permite ao médico implantar, mas as recomendações dos protocolos internacionais jamais ultrapassam o número limite de quatro embriões por tentativa de gravidez. No caso, portanto, com permissão ou não da mulher ou do casal, o médico, claramente, ultrapassou todo e qualquer limite ético razoável.

Existe alguma lei no Brasil que previna casos como esse?
Tenho repetido inúmeras vezes que existe uma omissão criminosa, um vazio, uma omissão legislativa criminosa no Brasil. O primeiro bebê de proveta brasileiro nasceu em 1984, há 25 anos, portanto, e até hoje o Congresso não conseguiu votar uma lei sobre o assunto. Os Projetos de Lei (PL) foram vários (Lucio Alcântara, Roberto Requião, Tião Viana, José Pinotti...), mas a intolerância e incapacidade para o diálogo e a busca de consenso de parte de grupos radicais favoráveis ou contrários às novas tecnologias reprodutivas levaram sempre ao arquivamento dos PL. Isso nos remete a outro tema: a absurda inexistência de um Conselho Nacional de Bioética no país. Esses Conselhos já existem em todos países da Comunidade Europeia há vários anos (o primeiro foi o da França, criado pelo presidente Miterrand, em 1982). Estes Conselhos -- pluralistas e multidisciplinares na sua formação -- agilizam o debate sobre temas polêmicos no campo biotecnocientífico e outros (como o aborto e a terminalidade da vida, por exemplo), facilitando ao Executivo o envio de mensagens moralmente espinhosas ao Legislativo. Com o vazio das leis neste campo, o Judiciário acaba tendo que -- como foi no caso do uso de embriões para retirada de células-tronco para pesquisas -- criar jurisprudência e legislar no lugar do Legislativo. O vazio é tão grave que quando a Lei de Biossegurança foi promulgada no Brasil, possibilitando o uso de embriões congelados há mais de três anos em clínicas de reprodução, em 2005, não se sabia sequer o número dessas clínicas em funcionamento no país.

No Brasil, portanto, não existe legislação para o assunto, infelizmente. Existe apenas uma resolução do ano 1993, promulgada pelo Conselho Federal de Medicina e direcionada aos médicos, que limita em quatro o número de embriões implantados. Mesmo assim, há alguns anos atrás no Hospital Materno-Infantil da L 2 Sul, aqui em Brasília, uma senhora chamada Lindamar, moradora da Ceilândia, teve quíntuplos, matéria exaustivamente coberta na época pelo Correio Braziliense. Ora: cinco ultrapassa quatro! Que eu saiba, até hoje o médico responsável não foi punido, seja pela Justiça, seja pelos organismos gremiais. A mulher tinha uma renda de pouco mais de um salário mínimo mensal e quando soube que teria cinco filhos de uma vez, além dos dois que já havia concebido antes de uma ligadura tubária, disse que era "a vontade de Deus"! O custo de UTI neo-natal para os quatro sobreviventes, na época, foi altíssimo, desviado, certamente, de outras atividades também essenciais.
Enquanto não houver lei no país, historias como estas e outros abusos frequentemente registrados pela imprensa em famosas clínicas de reperodução assistida do país continuarão ocorrendo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso Nacional em 5/10/2005 o PL 6032/2005 que cria o Conselho Nacional de Bioética, há mais de três anos, portanto. O projeto é excelente e está apensado a um projeto anterior e bastante parecido (também muito bem elaborado) dos deputados Ivan Valente (SP) e Maria José Maninha (DF). Atualmente, o referido PL recebeu urgência por parte do presidente do Congresso; espero que nos próximos meses os partidos cumpram seu papel e indiquem seus representantes na Comissão para resolver o assunto de uma vez. A ciência e a cidadania não podem ficar esperando por leis que nunca vêm e que atrasam o desenvolvimento científico e tecnológico do país, além de criarem espaços que facilitam o uso abusivo de novas técnicas.

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