Se o Prêmio Nobel de Medicina não veio no ano passado, é provável que as chances do paulista Miguel Nicolelis, de 48 anos, tenham aumentado substancialmente depois que sua pesquisa foi capa da revista Science, na edição de 20 de março.
Único brasileiro a ser o principal destaque da mais importante publicação científica do planeta, o professor do Departamento de Neurobiologia do Centro Médico da Universidade Duke , em Chapel Hill (no estado norte-americano da Carolina do Norte), não alimenta ilusões.
Em entrevista ao Correio, por telefone, ele afirmou que não pensa na fama, muito menos em Nobel. O que o cientista mais deseja é contribuir para que um paciente paraplégico ou tetraplégico ; de preferência brasileiro ; volte a se locomover. É melhor que ninguém duvide disso.
No estudo divulgado pela Science, Nicolelis e sua equipe desenvolveram um potencial tratamento para o mal de Parkinson: um dispositivo que estimula a medula espinhal e recupera os movimentos de camundongos e ratos apenas 3,5 segundos depois dos pequenos choques elétricos. Em estudos anteriores, o especialista já havia desenvolvido a interface cérebro-máquina, que permitia aos macacos moverem braços robóticos por meio de sinais cerebrais enviados a um computador.
A próxima fase da pesquisa sobre o mal de Parkinson será realizada com primatas no Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra (IINN), fundado pelo próprio Nicolelis. Para Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisa científica do IINN, o recente estudo do colega "é o mais próximo de uma transformação na vida das pessoas". "Já obtivemos todas as permissões para termos os macacos aqui e eles devem chegar em duas semanas", contou Sidarta. A previsão é de que a simulação com o estimulador da medula nos animais comece em abril.
O estudo faz parte de um plano para transformar Natal em centro de referência mundial em neurociência. Quando fala sobre o INN, Nicolelis deixa transparecer o orgulho. "Uma das maiores conquistas do IINN é a manutenção da uma escola de educação científica para mil crianças na periferia de Macaíba (RN), onde incentivamos diariamente alunos da rede pública a acreditarem em seus próprios sonhos", explicou.
Nicolelis acredita que a ciência ainda devolverá os movimentos a portadores de lesões na medula e afirma que uma "veste robótica" deve melhorar a qualidade de vida dos pacientes. De que modo o dispositivo implantado na medula pode ser esperança de tratamento e cura do mal de Parkinson? Cura eu não diria, mas tratamento; Isso porque a localização no sistema nervoso periférico permite que a gente estimule um número muito grande de fibras nervosas e transmita para o cérebro um sinal que, basicamente, desorganiza a atividade patológica que você vê na doença de Parkinson. Então, a gente consegue fazer com que essas células parem de disparar todas juntas, disparem normalmente fora de fase e, com isso, o animal começa a se mexer novamente. Esse dispositivo são duas lâminas bem finas e bem pequenas de metal, colocadas na superfície da medula espinhal, sem a necessidade de penetrar o tecido. Uma vez colocadas lá, a gente consegue passar pequenas correntes em alta frequência que geram um sinal transmitido a várias regiões do cérebro simultaneamente. A transferência desse sinal para todo o circuito motor simultaneamente permite que essas células voltem a funcionar como elas mesmas funcionariam. Seria quase como um marcapasso cerebral. Essa técnica é muito fácil, muito simples, muito segura e muito barata. Essa combinação tem o potencial de gerar uma nova forma de abordar a doença de Parkinson.
O senhor considera esse dispositivo a maior revolução da neurociência? É muito cedo para dizer ainda. Se a gente conseguir mostrar que essa técnica é efetiva em seres humanos, aí sim nós poderemos medir o impacto dela no tratamento da doença de Parkinson. Por enquanto, o dispositivo é uma descoberta interessante, por uma série de razões não apenas clínicas, mas pela pesquisa básica do cérebro. E ela tem o potencial grande de transferência para a prática clínica. Mas a gente precisa ainda fazer os estudos necessários para poder justificar essa afirmativa. Os testes foram reproduzidos com sucesso em camundongos. O senhor acha que os resultados serão parecidos em humanos? Quando pretende iniciar esses estudos clínicos? A demonstração até agora foi feita em dois modelos de doença de Parkinson em camundongos e em um modelo crônico em rato. Nós pretendemos fazer a próxima demonstração em macacos de diferentes espécies. Uma parte desses estudos vai ser feita no Instituto Internacional de Neurociência de Natal, em nosso centro de primatas, na cidade de Macaíba (RN). A outra vai ser feita aqui na Duke. Se os resultados forem tão bem-sucedidos como vimos até agora, a gente pretende ; em um ano e meio ou dois ; começar os estudos pré-clínicos em humanos, em pacientes que já tenham um grau da doença avançado, para ver qual o efeito. O senhor aprimorou a interface cérebro-computador. Quando começou a fazer com que macacos movessem braços robóticos apenas com o "pensamento"? Nós criamos essa preparação há mais ou menos uma década e fizemos as primeiras demonstrações em primatas em 2000 e 2003 para membros superiores. Nós acabamos de publicar um trabalho que foi demonstrado o ano passado, pela primeira vez, para membros inferiores. Agora nós estamos concretizando a ideia de usar essas novas tecnologias para criar uma veste robótica de corpo inteiro, que possa fazer com que o paciente paraplégico ou tetraplégico volte a se locomover espontaneamente usando a interface cerebral. Uma inferface cérebro-máquina faria com que uma veste robótica controlasse a deambulação desses pacientes. Então, o avanço em 10 anos tem sido muito grande e tenho a esperança de que nos próximos anos a gente consiga fazer um paciente ; que eu espero seja brasileiro ; voltar a se locomover normalmente, por meio dessa técnica. A veste robótica já está em desenvolvimento? Quando pretendem criá-la? Essa veste está sendo desenvolvida em colaboração com nossos colegas da Europa. Estamos na parte de design nesse momento. Já temos algumas ideias. Nós já temos um simulador virtual da veste, que vai nos permitir, em macacos e seres humanos, simular os movimentos com sinais cerebrais registrados. Eu espero que nos próximos dois anos a gente tenha a primeira grande demonstração, uma vez que constituímos um consórcio internacional para participar desse projeto, chamado Walk Again Project (Andar de novo, na tradução livre). As coisas estão andando como o esperado. Quão distante está a cura ou a reversão de lesões na medula? Acho que a cura em si, a reversão da lesão, ainda é um processo difícil. Nós estamos a cada dia mais próximos. Os avanços têm sido enormes. Eventualmente a reconexão das fibras nervosas vai ser feita um dia. Nesse momento, estamos chegando perto de soluções ; como a interface cérebro-máquina ; que vão propor formas alternativas e criativas de tratar os sintomas, enquanto a cura definitiva não vem. Haverá um momento em que essas técnicas vão se encontrar e teremos soluções que hoje sequer imaginamos e que serão responsáveis pela cura dessas lesões. Eu tenho muitas esperanças no futuro, mas acho que a gente tem de manter os pés no chão, não levantar falsas esperanças aos pacientes e às famílias. Mas ao menos dar a eles o conforto de que existem milhares de pessoas no mundo afora trabalhando para melhorar a qualidade de vida desses pacientes. No ano passado, o senhor foi cotado como um dos favoritos ao Nobel de Medicina. O senhor esperava tamanho reconhecimento na área científica internacional? Eu geralmente nem penso nessas questões. A mídia gosta muito de falar sobre isso. Mas nunca parei para pensar. O que realmente me deixou satisfeito, de concreto, foi o fato de alunos que saíram do nosso laboratório terem desenvolvido suas carreiras e todos terem feito contribuições importantes na neurociência. Inclusive brasileiros que saíram daqui, como o Sidarta Ribeiro, que está em Natal. Eu fiquei muito satisfeito com a possibilidade de dar uma aula lá no Karolinska Institute (Estocolmo). Talvez tenha sido um momento muito emocionante para mim, que foi representar o Brasil numa aula no Comitê Nobel. Essas são coisas das quais os cientistas vivem. Cientistas vivem de resultados e de publicações, de verem seus trabalhos avançarem e seus alunos superarem aquilo que eles aprenderam. A gente não fica parando para pensar o que pode acontecer ou que prêmio pode ganhar. Isso não faz parte da minha vida, não. O que falta para o desenvolvimento maior da ciência no Brasil? Apoio do governo ou interesse da iniciativa privada? Eu acho que falta uma série de coisas: consistência, critério, manter a palavra empenhada. Falta os editais serem iguais para todos, serem respeitadas as normas iniciais. É tudo muito difícil. A burocracia é muito difícil no Brasil. Fazer as coisas acontecerem como elas foram prometidas é muito difícil. Mas a qualidade do cientista brasileiro é muito alta. Nossa capacidade, nosso capital humano são muito grandes no Brasil. A criatividade é muito grande. Precisamos ter uma formação melhor dos cientistas brasileiros. Dar menos ênfase na questão classe, aula, e mais ênfase na formação humanística, técnica em laboratório. Injetar no nosso estudante um desejo de fazer coisas diferentes e grandes. O Brasil precisa de uma atividade científica voltada também para o desenvolvimento estratégico do país. É preciso dar asas à imaginação e dar meios para que cientistas brasileiros se desenvolvam. Nós ainda temos problemas com a importação de insumos e de equipamentos, formação de pessoal, sustentação a longo prazo de projetos. Tudo isso precisa ser melhor formulado e com uma visão a longo prazo. Agora, que o Brasil tem capital humano de sobra não há a mínima dúvida. Os estudantes brasileiros são bem-sucedidos no mundo inteiro e quando eles voltam ao Brasil precisam ser recebidos com o apoio devido ao talento de cada um deles. É uma comunhão de coisas que tem de pôr a ciência no primeiro plano de uma visão estratégica de nação. A ciência tem de estar lá. Quando e por que o senhor decidiu criar o Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra? A ideia era mostrar que a ciência tem um papel fundamental na transformação social e econômica de uma sociedade como a brasileira. Principalmente em regiões do país onde os investimentos científicos, até recentemente, não eram privilegiados. O Nordeste foi escolhido como uma demonstração clara de que era possível, sim, construir um pólo de excelência e demonstrar o talento dos cientistas brasileiros, não só da região, como outros que estavam fora do Brasil, desejavam voltar para o Brasil e não tinham espaço para isso. A ideia foi criar um modelo onde a ciência não é só usada para produzir conhecimento de ponta, mas para disseminar esse conhecimento, por meio de ações educacionais, da prestação de serviço médico à mulher e à criança e da transformação do conhecimento científico em uma fonte de divisa de receitas para o Brasil. Eu acho que a capa da Science é uma demonstração de que esse exemplo e esse modelo podem ser bem-sucedidos rapidamente. Em menos de quatro anos nós fomos do desconhecimento completo para a capa da maior revista de ciência do mundo. Para qualquer pessoa que tinha qualquer dúvida da seriedade e da motivação dessa aventura científica, a demonstração é categórica. Mais exemplos desse precisavam surgir. O Brasil precisa apostar mais em si mesmo e na qualidade da ciência como agente de transformação social. A capa da Science pode servir de incentivo para os cientistas brasileiros e aos próprios colegas de Natal? A capa é uma questão circunstancial. O exemplo que pode ser seguido é o de se apostar que, uma vez que você tem determinação e visão a longo prazo, e aposta no talento brasileiro com seriedade, você tem condições de mudar radicalmente o perfil da ciência no Brasil como das pessoas que fazem a ciência no Brasil. Uma das maiores conquistas do IINN é a manutenção da uma escola de educação científica para mil crianças na periferia de Macaíba (RN), onde incentivamos diariamente alunos da rede pública, que jamais haviam tido contato com a ciência, a acreditarem em seus próprios sonhos. E de lá nós temos resultados que têm servido de muito orgulho para todos nós e tem tido repercussão internacional. Dr. Sidarta comenta pesquisa do Dr. Nicolelis