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Partidários de Ahmadinejad e de Moussavi saem às ruas de Teerã, mas não se confrontam

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De nada adiantaram os apelos de Mir Hossein Moussavi, o candidato derrotado na eleição presidencial da última sexta-feira, para que seus partidários evitassem as ruas de Teerã ; e um confronto, que se anunciava potencialmente sangrento, com os partidários do presidente reeleito do Irã, Mahmud Ahmadinejad. Como se repete desde o anúncio do resultado oficial, milhares de oposicionistas voltaram a se manifestar ontem, mas concentrados nos bairros elegantes do norte da capital. Enquanto isso, uma multidão de governistas tomava a Praça Vali Asr, na região central. Mas o temido choque não ocorreu, ao contrário: conservadores e reformistas travaram um duelo ao ar livre, porém sem audiência externa: as autoridades iranianas proibiram a mídia estrangeira de cobrir ;manifestações ilegais; e, na prática, manteve os correspondentes confinados em seus escritórios. À margem da queda de braço entre as multidões, uma delicada negociação corria no nível institucional entre as facções do regime, com o líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei, equilibrando-se entre as simpatias pelos conservadores e o zelo pela legitimidade do regime. O Conselho dos Guardiões, órgão supervisor de processos eleitorais subordinado ao próprio líder, reuniu-se com os três candidatos vencidos para analisar seus pedidos de anulação do pleito. No fim, o chefe do conselho, aiatolá Ahmad Jannati ; fiel a Khamenei ; ofereceu uma recontagem parcial dos votos, restrita aos distritos sobre os quais houvesse queixas específicas de fraude. Segundo fontes opositoras cotadas pela emissora britânica BBC, Moussavi, que assegura ter vencido, teria rejeitado a recontagem e insistido na exigência de nova eleição. Uma medida do terremoto político que abala a República Islâmica, mal completados seus 30 anos, foi a censura feita pelo presidente do Parlamento, Ali Larijani, à polícia e aos milicianos Basij, espécie de ;tropa de choque; do regime, por terem invadido no domingo um dormitório na Universidade de Teerã, tradicional reduto reformista. Conservador, porém pragmático, e aliado fiel de Khamenei, Larijani responsabilizou pessoalmente o ministro do Interior. As manifestações de ontem se dispersaram normalmente, mas na véspera oito pessoas morreram depois que desconhecidos, identificados por repórteres como possíveis milicianos, dispararam contra os partidários de Moussavi. Gary Sick, scholar da Universidade de Columbia e conselheiro de três governos americanos (Gerald Ford, Jimmy Carter e Ronald Reagan) para assuntos relativos ao Irã, afirma que a eleição de sexta-feira ;foi roubada, sem dúvida;. Ele vê nisso uma demonstração de que Khamenei e sua facção ;estão mais preocupados em manter o poder do que em ser bem-vistos no exterior;. Até por isso, Sick endossa a atitude cautelosa seguida até aqui pelo governo do presidente Barack Obama. Embora tenha reiterado ontem sua ;profunda preocupação; com o desenrolar dos acontecimentos no Irã, Obama insistiu uma vez mais em que a solução do impasse está ;nas mãos dos iranianos;, e apontou a orientação de Khamenei para que as queixas fossem apreciadas como ;um sinal de que ele entende as preocupações de seu povo;. ;Meu conselho (para o presidente) seria esse mesmo, de fazer o mínimo possível;, ponderou Sick. ;Há uma batalha interna em andamento no Irã, e ela deve ser travada entre os iranianos. Não há nada a ganhar com a intervenção de forças externas que tenham interesse em influenciar o desfecho da disputa.; Um pronunciamento mais incisivo de Washington seria, na sua opinião, ;um terrível engano;: ;Não importa o que o que um governo diga ou faça, será visto no Irã como ingerência e serviria apenas para caracterizar os reformistas como ;instrumentos; do Ocidente.; República em xeque É o arcabouço institucional da República Islâmica que está no centro do cabo de guerra entre autoridades religiosas e sociedade civil, entre conservadores e reformistas. Embora o sistema político iraniano pareça autoritário pelos padrões ocidentais, está muito mais próximo do conceito clássico de uma democracia do que qualquer outro no Oriente Médio, com exceção de Israel. Não é por outro motivo que não apenas o candidato derrotado Mir Hossein Moussavi, mas também o ex-presidente Mohammad Khatami, um ;cardeal; da facção reformista, têm insistido com seus seguidores no respeito à legalidade. Foi em nome dela, e tomando pela letra a Constituição revolucionária de 1979, que Khatami implantou em seu governo a eleição de governos municipais, inéditas nos mais de 2 mil anos de monarquia. O cuidado vem também do campo oposto, principalmente do líder religioso, Ali Khamenei, ele próprio um ex-presidente. Khamenei orientou o Conselho dos Guardiões a examinar as queixas dos derrotados e, desde que a disputa ganhou as ruas, mantém silêncio eloquente sobre as manifestações declaradas ilegais. Não ordenou a repressão pura e simples, como em ocasiões anteriores, nem desqualificou os reformistas. De um e outro lado, é evidente o cuidado de evitar uma convulsão política na qual naufragariam ambas as facções, e com ela o regime liderado pelos aiatolás. Diferenças à parte, nove entre 10 iranianos definiriam como o pior cenário possível uma regressão à anarquia. Meio século de crises e mal-entendidos Golpe pró-xá Em 1951, Mohammed Mossadegh é eleito primeiro-ministro do Irã e nacionaliza o petróleo, desapropriando refinarias. Os EUA patrocinam em 1953 um golpe de Estado, que afasta o premiê nacionalista e restitui ao poder o xá Reza Pahlevi, aliado de Washington. Revolução islâmica Em março de 1979, o aiatolá Khomeini retorna do exílio e comanda a Revolução Islâmica, que instaura a república. As relações com os EUA se deterioram quando Washington dá asilo ao xá deposto, cuja extradição é pedida pelo regime islâmico. Crise dos reféns Em novembro de 1979, estudantes radicais ocupam a embaixada americana em Teerã e tomam diplomatas e funcionários como reféns. Washington rompe relações em 1980 e o presidente Jimmy Carter ordena uma operação militar de resgate, que termina em fracasso. Os últimos reféns são libertados depois de 444 dias, em janeiro de 1980, no dia em que Carter deu posse a seu sucessor, Ronald Reagan. Guerra Irã-Iraque Em 1980, Saddam Hussein invade o Irã a pretexto de uma disputa de fronteiras, iniciando uma guerra que duraria oito anos, com saldo final na casa de 1 milhão a 1,5 milhão de mortos, entre os dois países. Oficialmente neutros, os EUA favorecem o regime iraquiano, fazendo vistas grossas ao contrabando de armas para as tropas de Saddam e dando escolta militar a navios de países vizinhos que transportavam petróleo iraquiano. Na fase final do conflito, um navio da Marinha americana abateu por engano um Airbus iraniano, causando a morte dos 290 passageiros e tripulantes. Escândalo Irã-contras Depois que o Congresso dos EUA proibiu o governo de apoiar os ;contras;, rebeldes que lutavam em oposição ao regime sandinista (esquerdista) da Nicarágua, um setor da administração ligado diretamente à Casa Branca inicia contatos secretos com o Irã para oferecer armas, com o objetivo de desviar as receitas da operação clandestina para os ;contras; nicaraguenses. As negociações fracassam e são tornadas públicas pelo Irã, provocando um escândalo investigado pelo Congresso americano. O principal punido foi o coronel Oliver North, do Conselho de Segurança Nacional. Guerra no Líbano Durante a guerra com o Iraque, o Irã patrocinou atentados à bomba e sequestros de ocidentais por seus aliados xiitas do Líbano, então em guerra civil. A situação agravou-se depois da invasão do país por Israel, que chegou a cercar Beirute. Assinado o cessar-fogo com o Iraque, em 1988, o regime iraniano passou a contribuir para gestões diplomáticas que resultaram, dois anos mais tarde, no fim da guerra civil libanesa. Era Khatami O religioso reformista Mohammad Khatami foi eleito presidente do Irã em 1997, com votação maciça dos jovens e mulheres. Khatami iniciou uma cuidadosa liberalização do regime, especialmente no terreno dos costumes, e estimulou o fortalecimento da sociedade civil e de instituições como o Parlamento, os partidos e a imprensa. Um ano depois de tomar posse, deu entrevista à TV americana CNN, gesto inédito da parte de um dirigente iraniano, e acenou para uma reaproximação com os EUA. O então presidente Bill Clinton não quis ou não pôde corresponder ao movimento de Khatami, que acabou progressivamente isolado pelos religiosos conservadores. Guerra ao terror Khatami condenou pública e explicitamente, na primeira hora, os atentados de 11 de setembro de 2001 contra Washington e Nova York. Um mês mais tarde, quando invadiram o Afeganistão como represália, os EUA estabeleceram canais diplomáticos para evitar incidentes entre suas tropas e patrulhas de fronteira iranianas. Acerto semelhante foi feito em 2003, quando o presidente George W. Bush ordenou a invasão do Iraque ; o que não impediu que mísseis americanos errassem o alvo e atingissem território iraniano. Crise nuclear Já com o radical Mahmud Ahmadinejad na presidência, a partir de 2005, o Irã é acusado de desenvolver um programa nuclear paralelo com fins militares. Os Estados Unidos encabeçam uma articulação internacional para obrigar o regime islâmico a suspender o enriquecimento urânio ; atividade que lhe é facultada, como país signatário do Tratado de Não Proliferação (TNP), mas que embora sirva à produção de combustível para reatores civis também é essencial para obter uma bomba atômica. Diante da recusa de Teerã, as Nações Unidas já aprovaram dois pacotes de sanções econômicas. O governo de George W. Bush sinalizou mais de uma vez que poderia optar pelo uso da força, caso a diplomacia se mostrasse ineficaz. Governo Obama Em seu discurso de posse, em janeiro passado, o presidente Barack Obama endereçou a Irã, Cuba e outros desafetos dos EUA, sem citar nomes, a mensagem de que se disporia a ;estender a mão; àqueles que acenassem ;abrindo o punho;. No mês seguinte, por ocasião do ano-novo persa, Obama enviou mensagem de vídeo dirigida ;ao povo e aos líderes; do país, ao qual se referiu pelo nome oficial ; República Islâmica do Irã. Ofereceu um ;novo começo; nas relações, para superar pelo diálogo o ;muro de desconfianças;, expressão usada 10 anos atrás por Mohammad Khatami. Desde o início da crise pós-eleitoral no Irã, a Casa Branca tem mantido um tom com o qual evidencia seu interesse pelos acontecimentos e ressalva o respeito pela soberania das instituições iranianas.