Silvio Queiroz
postado em 09/11/2009 09:18
O deputado berlinense Torsten Hilse mostra cartaz alusivo ao Partido Social-Democrata oriental (Alto), que ajudou a criar, em 7 de outubro de 1989 (veja a assinatura no manifesto de fundação): na época, ele era um intelectual descontente (acima, em destaque) com a situação política do leste da Alemanha
[SAIBAMAIS]O deputado berlinense Torsten Hilse ainda é capaz de reconstituir com detalhes a torrente de acontecimentos do segundo semestre de 1989, inclusive das semanas em que 40 anos de história se precipitaram nas cenas inacreditáveis da noite de 9 de novembro. Nascido em 1955, o Muro de Berlim fez parte de toda a sua vida, até onde é capaz de se lembrar. E, aos 34 anos, a divisão da Alemanha, a presença militar norte-americana e soviética de cada lado da fronteira traçada pela Guerra Fria, parecia destinada a perdurar por todo o sempre. Até a madrugada em que esse mundo de conflitos e certezas rígidas como o concreto cinzento ruiu.
"Nesses dias notáveis do outono de 1989, quase tudo o que aconteceu ficou profundamente gravado na memória", diz ele, aos 54 anos, ao mesmo repórter a quem recebeu, 20 anos atrás, na casa onde mora até hoje no emblemático bairro de Pankow, atualmente um reduto político dos ex-comunistas agrupados no partido da Esquerda. Naquele novembro distante, que antecipou a primeira neve do inverno ainda por vir, Torsten Hilse falava com esperança no Partido Social-Democrata alemão-oriental. Um mês antes da queda do muro, em meio à fuga em massa dos cidadãos e às primeiras manifestações de rua pela democracia, ele estivera entre o punhado de dissidentes que se reuniram clandestinamente para o congresso de fundação.
Hilse, como a maioria dos companheiros que assinaram o manifesto da nova agremiação (veja fac-símile), era na época um exemplar típico de intelectual descontente. Jovens se aproximando da maturidade, cabeludos e barbudos, vestidos de jeans e camisas de flanela. Podiam ser vistos com livros do dramaturgo Bertolt Brecht e, em casa, sua trilha sonora seriam canções de protesto de Wolf Bierman, uma espécie de "Bob Dylan" do Leste Europeu, àquela altura já exilado no Ocidente. Mas, diferentemente do ídolo, eles não pretendiam emigrar, não buscavam a fuga individual da opressão: queriam resgatar o nome oficial do país, de República Democrática Alemã (RDA).
"Engajar-se por uma democratização consequente da RDA%u201D era um dos objetivos do manifesto de fundação do Partido Social Democrata na Alemanha Oriental, assinado em 7 de outubro de 1989 - praticamente um mês antes da queda do Muro de Berlim - por um punhado de ativistas dos direitos humanos e civis, que se recusavam a assistir à "desestabilização crescente de nosso país". O compromisso com a RDA esteve presente na própria escolha da sigla: SDP, com a finalidade de diferenciá-la do tradicional SPD alemã-ocidental. "Não queremos ser anexados", sustentava Hilse.
Agora, como deputado do Parlamento de Berlim pelo SPD - que anexou o pequeno SDP, de maneira análoga ao que ocorreu entre as Alemanhas menos de um ano depois do muro -, ele vê esse processo com outros olhos. "Ainda me alegro e me emociono com a reunificação", disse ao Correio por e-mail. "Com ela, um sonho e uma nostalgia se tornaram realidade". Não que o antigo olhar crítico sobre o próspero Ocidente se tenha esvaído. "As oportunidades que se abriram com isso, infelizmente, não foram aproveitadas", avalia, referindo-se ao desemprego elevado na antiga metade oriental do país.
Ironia
O quadro socioeconômico desigual nas duas metades do país fez o deputado refém de uma ironia histórica. Berlim Oriental, como ficou demonstrado na eleição legislativa de setembro, é reduto dos herdeiros do antigo Partido Comunista. E a capital, que tem status de um estado na federação, é governada por uma coalizão entre eles e a social-democracia, liderada pelo prefeito Klaus Wowereit. Hilse, veterano de movimentos clandestinos protegidos pela Igreja Luterana - ele atuava em 1989 em uma gráfica da instituição, depois de ter sido demitido de uma estatal -, hoje trabalha em coalizão com a sigla de seus perseguidores.
Como político, ele se adapta. "No começo, tive problemas com eles, mas hoje acredito que não é mais fácil nem mais difícil do que aliar-se com qualquer outro partido", afirma. Mas a atitude pragmática não significa, para ele, esquecimento. Muito menos pendor pela "ostalgia", a nostalgia do Leste (Ost, em alemão), cultivada hoje em dia em círculos intelectuais. "Muita gente se esquece rapidamente daquilo que foi ruim, o que é importante para seguir adiante com a vida. Muita gente se lembra da RDA de uma maneira acrítica. Mas, em política, não se deve esquecer nada", raciocina Hilse.
Como a telona e as letras abordaram o muro
Filmes
O espião que saiu do frio
Adaptação brilhante do diretor americano Martin Ritt (de Testa de ferro por acaso e Norma Rae) para a obra-prima de John Le Carré, autor clássico de romances de espionagem. Inesquecível a reconstituição do cenário lúgubre da zona de exclusão no lado oriental do muro.
Cortina rasgada
Embora seja um filme menor, esse thriller leva a assinatura do mestre do suspense, Alfred Hitchcock, e tem o charme de Paul Newman no papel de um cientista americano que simula uma deserção para roubar segredos militares da Alemanha Oriental. Maniqueísta, mas mesmo assim capta o pano de fundo da Alemanha dividida pela Guerra Fria.
Adeus, Lênin
Deliciosa alegoria sobre as alucinantes mudanças políticas, econômicas e sociais que se seguiram à queda do muro e à reunificação. A partir de um drama familiar, o roteiro passeia pelo bizarro do regime comunista, sem perder a dimensão dos novos problemas que sobrevieram para os sobreviventes.
A vida dos outros
Oscar de filme estrangeiro de 2006, esse drama é outro mergulho profundo e tocante no universo do regime comunista, em particular a onipresença da Stasi - a polícia política que chegou a manter uma rede de 100 mil dedos-duros. Valeria a sessão apenas pela sequência de piadas sobre o mandachuva Erich Honecker no refeitório da Stasi.
Livros
O espião que saiu do frio
Para quem tenha ou não assistido ao filme, é complemento indispensável. John Le Carré recria, na trama, os bastidores sórdidos da espionagem na Guerra Fria, sem contemplações nem mocinhos - apenas bandidos. Comunistas e anticomunistas são expostos sem máscaras no cinismo desumanizado dos personagens de uma jogada magistral do serviço secreto britânico.
O verde violentou o muro
O escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão debruça seu olhar de testemunha sobre a Berlim dos anos 1980 e 1990, antes e depois da queda do muro. As reflexões de então, revisitadas duas décadas mais tarde, oferecem uma oportunidade para recuperar o impacto cotidiano das mudanças e seu significado não apenas para os berlinenses e alemães, mas para as gerações que se formaram em um mundo dividido pelo conflito entre Estados Unidos e União Soviética.
Stasiland
A australiana Anna Funder mergulhou como pesquisadora nos arquivos da Stasi e, a partir das informações, investigou como jornalista os personagens - perseguidores e perseguidos - das histórias cotidianas e anônimas da repressão política na Alemanha Oriental. O resultado traduz em nomes e relatos personalizados o que se conhecia como números e conceitos de história e ciência política. Para quem tenha assistido a A vida dos outros, a leitura de Stasiland dá os contornos reais de uma trama que poderia perfeitamente não ser ficção.
A reunificação da Alemanha
Nesta obra, com a terceira edição recém-lançada pela Editora Unesp, o cientista político e historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira reconstitui os bastidores da disputa intestina que levou à queda de Erich Honecker, do Muro de Berlim e ao dominó que culminou com o fim da União Soviética. Entre as fontes do autor, estão entrevistas com alguns dos protagonistas do eletrizante outono (boreal) de 1989, como Egon Krenz, Hans Modrow e Lothar de Maizière, sem falar no chefe da Stasi, Erich Mielke, e no superespião Markus Wolf.