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Pelo caminho das urnas

Veterano da guerrilha urbana chega ao poder e consolida a hegemonia política da esquerda, mas exclui radicalização

postado em 30/11/2009 10:13
Confiante na vitória de seu candidato à presidência do Uruguai, o veterano ex-guerrilheiro José Mujica, de 74 anos, a coalizão de centro-esquerda Frente Ampla, que governa o país desde 2004, nem esperou os resultados finais para começar a festejar mais cinco anos no governo. Pouco depois das 20h30, as projeções de todos os institutos de pesquisa davam a Mujica cerca de 51% dos votos, contra 44% para o ex-presidente Luis Alberto Lacalle. O anúncio levou ao delírio os governistas que aguardavam em um hotel da capital o primeiro pronunciamento do presidente eleito. Nas ruas, simpatizantes promoveram um buzinaço ensurdecedor. O atual governante, Tabaré Vázquez, foi um dos primeiros a cumprimentar o vitorioso. Veterano da guerrilha urbana chega ao poder e consolida a hegemonia política da esquerda, mas exclui radicalizaçãoOs locais de votação abriram as portas às 8h, e a única preocupação das autoridades era a previsão de fortes chuvas, o que, segundo o ministro da Corte Eleitoral Edgardo Martínez Zimarioff, fez com que algumas seções em zonas rurais, afetadas por inundações, abrissem um pouco mais tarde. "Temos algumas dificuldades nas regiões norte e oeste do país", informou Zimarioff. Também chamou a atenção a constatação de que a lei seca, da mesma maneira como ocorre no Brasil, foi solenemente ignorada. Nos restaurantes, garrafas de vinho eram vistas sobre as mesas sem qualquer preocupação de dissimular o consumo de bebida. Embalado pela vantagem, Mujica já pensava na composição do governo e fazia acenos à oposição, embora seu partido tenha maioria absoluta em ambas as casas do Congresso. Além de garantir que seu companheiro de chapa, Danilo Astori, se encarregue da gestão econômica, Mujica mostrou-se disposto a negociar sobre alguns temas - educação, segurança, energia e meio ambiente - e até abriu a possibilidade de nomear opositores para alguns ministérios. "Ter votos a mais não significa que sejamos donos da sociedade, muito menos que nossa verdade seja imaculada", declarou. José Mujica ressaltou também que vai manter as políticas do atual presidente, Tabaré Vázquez, e continuará os esforços pela integração regional. Durante a campanha, os partidos tradicionais acusaram a Frente Ampla e seu candidato de representarem risco para a imagem externa do Uruguai, de reduto da moderação para o campo "socialista" aglutinado pela Venezuela de Hugo Chávez. Mujica rebateu as críticas e cultivou uma imagem conciliadora que parece ter convencido os eleitores. O novo presidente do Uruguai assume o cargo no dia 1º de março, para um mandato de cinco anos. Honduras O Uruguai não vai reconhecer o resultado das eleições em Honduras, segundo reafirmou ontem o atual presidente, Tabaré Vázquez. A declaração foi dada pelo chefe de Estado enquanto votava no segundo turno da eleição presidencial. "Trata-se de um ato absolutamente ilegal, que o governo uruguaio não vai reconhecer", declarou Vázquez aos jornalistas. O presidente destacou os contrastes entre a votação em seu país, que coroa 24 anos de vida democrática ininterrupta, e a realizada em Honduras, sob "um governo ilegítimo". "Apesar de parecerem similares, os dois ato estão em polos opostos", concluiu. O número 51% Projeção dos institutos de pesquisa para a votação do candidato da Frente Ampla, José Mujica. Seu adversário, Luis Lacalle, ficou com 44% dos votos Perfil/José Mujica Um estranho no palácio Silvio Queiroz Veterano da guerrilha urbana chega ao poder e consolida a hegemonia política da esquerda, mas exclui radicalizaçãoOs amigos e colaboradores mais próximos ainda se colocam a imaginar como será conviver com José Pepe Mujica aprisionado pelos ditames do protocolo presidencial, do traje à própria residência oficial. Ainda como candidato, contam-se nos dedos as ocasiões em que o veterano da guerrilha urbana nos anos 1960-70 se apresentou de terno e gravata. No íntimo, aos 74 anos, o veterano esquerdista que amargou duas décadas entre a clandestinidade e as masmorras da ditadura gosta mesmo é de caminhar de jeans e botas pela chácara onde vive desde a anistia, em 1985, com a mulher - e companheira de armas - Lucía Topolansky, 10 anos mais jovem. O casamento foi celebrado em 2005, em um momento da vida em que filhos já estavam fora dos planos. Mas o romance vem dos anos de chumbo, quando ambos militaram no Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros, fundado em 1963 por setores da classe média urbana radicalizados, descrentes tanto dos partidos tradicionais - blanco e colorado - quanto da esquerda histórica (basicamente, o Partido Comunista). Entre uma "tropa" formada principalmente por jovens de formação universitária, um rancheiro já na faixa dos 30 anos estava destinado a exercer liderança naturalmente. Embora nascido em Montevidéu, Mujica viveu as primeiras décadas trabalhando na terra, e de lá saiu quando o ambiente político do país tornou-lhe impossível a vida legal. No fim dos anos 1960, em meio a uma escalada de conflitos trabalhistas e sociais, e ainda com agitação nas universidades e escolas, o governo de Pacheco Areco recorria com insistência às medidas de exceção. A multiplicação das ações armadas dos tupamaros na cidade apenas deu o pretexto faltava para que o país se encaminhasse a uma ditadura, embora esse caminho fosse completado apenas em 1973, quando o frágil presidente civil de Juan María Bordaberry entregou na prática o comando do país aos militares. Mujica já estava no cárcere desde 1972 e exibia no corpo a marca de seis ferimentos à bala, resultado da participação em inúmeras operações militares - entre sequestros, assaltos a bancos e mesmo a célebre tomada de Pando, em 1969. Não teve, porém, a sorte dos camaradas resgatados em 1971 em uma das façanhas memoráveis do grupo: 106 militantes fugiram da prisão de Punta Carretad por um túnel. O agora presidente eleito tampouco é mencionado entre os participantes do tríplice sequestro do embaixador britânico, do cônsul brasileiro e de um agente da CIA norte-americana - os dois últimos acabaram expondo as conexões internacionais do aparato repressivo uruguaio, instruído por assessores estrangeiros em técnicas de tortura. Esse passado de cicatrizes poderia sugerir que, 13 anos mais tarde, sairia da prisão um cinquentão amargo e de pensamento enrijecido. Tanto mais porque os principais líderes tupamaros eram informalmente "reféns" da ditadura: seriam executados se os remanescentes do grupo reiniciassem a ofensiva armada. Mas Mujica mergulhou instantânea e completamente na vida política institucional. Foi um dos fundadores do Movimento de Participação Popular (MPP), que agrupou os egressos da guerrilha urbana, elegeu-se deputado e, em 1999, saiu das urnas como o senador mais votado do país. Reelegeu-se em 2004, presidiu o Senado e tornou-se ministro de Agricultura, Pecuária e Pesca. Com sua contribuição, o MPP tornou-se força dominante na coligação esquerdista Frente Ampla, que chegava pela primeira vez ao poder com o socialista Tabaré Vázquez. Foi com um perfil de político afável e permeável ao diálogo que Mujica se credenciou a representar a legenda nas presidenciais deste ano. De saída, desarmou os adversários que apostaram no fantasma de seu passado guerrilheiro, sugerindo até mesmo uma aliança com o bloco bolivariano de Hugo Chávez. Repetidas vezes, o candidato deixou claro que sua referência no continente é o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre o venezuelano, com a autoridade de quem investiu o melhor da vida adulta na esquerda ideológica, Mujica é categórico: "Está criando burocracia, não socialismo".

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