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Filho da destruição nuclear em Hiroshima destaca importância da lembrança

Mito Kosei estava no ventre da mãe quando Hiroshima foi arrasada pela bomba atômica. Ele destaca a importância de se recordar daquele dia para que nunca mais ocorra

postado em 07/12/2009 08:39
Enviado especial Hiroshima (Japão) - Enquanto o mundo se prepara para discutir, em maio de 2010, em Nova York, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), existe no Japão um grupo de pessoas para quem a polêmica em torno do perigo de uma nova tragédia é algo extremamente preocupante. Especialmente em uma época em que a Coreia do Norte segue desafiando o resto do planeta com testes nucleares, o Irã busca enriquecer urânio e planos terroristas para detonar uma bomba atômica nos Estados Unidos já foram descobertos após os atentados de 11 de setembro de 2001. Naquela que foi a primeira cidade da história a sofrer um ataque nuclear, a reportagem do Correio encontrou Mito Kosei, um dos 235 mil hibakushas - sobreviventes das bombas detonadas em Hiroshima e Nagasaki - reconhecidos oficialmente pelo governo japonês. Aos 63 anos, Kosei, professor de inglês aposentado, dedica-se todos os dias a guiar, gratuitamente, turistas de vários países por um passeio pela Praça da Paz e pelo Museu da Paz de Hiroshima. Apesar de ser considerado um sobrevivente do massacre atômico, Kosei, não carrega na lembrança nenhuma memória daquele 6 de agosto de 1945, quando o Little Boy, apelido da primeira bomba atômica usada contra seres humanos, varreu a cidade de Hiroshima. Kosei ainda não tinha vindo ao mundo quando o inferno tomou conta da cidade naquela manhã de segunda-feira. Sua mãe, Mito Tomie, hoje com 91 anos, estava grávida dele à época do ataque nuclear. Ela e a família estavam na casa de parentes, a sete quilômetros do epicentro da explosão, quando a tragédia ocorreu. Foram poupados, ao menos inicialmente, das terríveis consequências daquele ataque. Kosei nasceu 169 dias depois de a bomba atômica ter devastado Hiroshima. Apesar de sua mãe ter entrado na área considerada crítica três dias após a catástrofe e, assim, ter sido exposta à radiação, ele não apresentou sequelas. Ao contrário de dezenas de outros bebês, que vieram ao mundo com problemas de malformação ou desenvolveram câncer no futuro. Esses japoneses, que formam a primeira geração pós-bomba, integram a quarta classe de sobreviventes reconhecidos pelo governo do Japão (veja quadro). Preconceito Mito Kosei lembra que, para muitos, o simples fato de ser um sobrevivente deixou marcas tão profundas que a vida dessas pessoas nunca mais foi a mesma. Os efeitos psicológicos ou físicos daqueles que viveram o terror não foram os únicos pesos que eles tiveram que carregar. Em muitos casos, o preconceito surgiu como uma das piores heranças. "Quando os sobreviventes eram novos, ninguém sabia o que aconteceria com eles por causa dos efeitos da radiação", explica Mito Kosei. "Como as pessoas tinham receio se eles teriam bebês sadios, muitos tiveram dificuldades para se casar. Por medo do preconceito, muita gente se recusou a ser reconhecida como sobrevivente dos ataques nucleares". Tanto Kosei quanto sua mãe tiveram sorte e não passaram por maiores traumas. Pai de duas filhas - Ikue nasceu em 1969 e Yukiko em 1970 -, o guia turístico não tem qualquer registro na memória de uma Hiroshima arrasada. A reconstrução foi muito rápida e, apenas sete anos depois da tragédia, o local estava praticamente reerguido. "Tive sorte. Quando era criança, não conheci nenhum outro menino ou menina como eu. Não tenho lembranças da cidade destruída. Minha mãe não falava sobre o assunto. Demorou muito tempo para que eu soubesse o que tinha acontecido aqui". Hoje, ciente de tudo o que a história reservou à cidade natal, Mito tornou-se estudioso dos fatos que marcaram aquele 6 de agosto. Todos os dias, ele se esforça em passar adiante a história e guia com enorme orgulho grupos de turistas de todo o planeta. "É minha responsabilidade contar o que aconteceu com a gente", relata. "Não tenho orgulho de ser um sobrevivente porque essa não é uma palavra adequada devido ao que aconteceu aqui. É por isso que eu trabalho como guia. Para que as pessoas possam saber mais da nossa história e para que ela não se repita". O número 235.569 Total de sobreviventes reconhecidos pelo governo Sobreviventes Os hibakushas (sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki) são classificados em quatro classes, segundo o grau de exposição às explosões - Primeira classe (145.525) Pessoas que estavam em uma área entre 4km e 5km do hipocentro da explosão - Segunda classe (58.682) Aqueles que entraram na área de até 2km do hipocentro da explosão em até duas semanas após a detonação - Terceira classe (24.238) Pessoas envolvidas no tratamento ou na cremação das vítimas. - Quarta classe (7.396) São aqueles que estavam no útero das mães quando as bomba explodiram. Muitas crianças nasceram sem vida, com problemas físicos ou desenvolveram doenças Sem mágoas dos EUA Desde que se tornou guia independente - antes havia trabalhado por três anos e três meses, até 2005, como guia do Museu da Paz - Mito Kosei já recebeu grupos de quase 120 países. Todos os dias, ele atualiza um caderno no qual registra o número de turistas e o país de origem de cada grupo que guia. "Até agora foram 10.080 visitantes, de 118 países", diz, com orgulho. "Do Brasil, já foram 97 pessoas", ressalta. O repórter, então, pergunta qual o sentimento dele em relação aos norte-americanos. Kosei consulta suas anotações para dizer que já guiou 2.229 turistas daquele país. "Eu sempre dou as mesmas informações a todos os visitantes, não importa de onde eles são", explica. "Em relação aos norte-americanos, eles me escutam com muita modéstia. Mas pouquíssimos se desculpam pela tragédia". Apesar de viver diariamente o exercício de lembrar uma época de horror inimaginável para a maioria das pessoas, ele diz não carregar mágoas de ninguém. Sua maior tristeza está reservada mesmo à guerra. "Qualquer guerra é perversa", ensina. "Não há guerra boa. As vítimas são sempre os soldados e os civis. Nem todos os americanos são maus e nem todos os japoneses são bons. Todos têm um lado bom e ruim", encerra Kosei, para quem o temor de um ataque nuclear não está descartado. "É fácil construir uma arma atômica. Talvez aconteça de novo, e é por isso que temos que lembrar a cada dia o que aconteceu no Japão. Seremos muito estúpidos por repetir esses erros", sentencia. Mito Kosei estava no ventre da mãe quando Hiroshima foi arrasada pela bomba atômica. Ele destaca a importância de se recordar daquele dia para que nunca mais ocorraRelógio da paz Exposto no hall do Museu da Paz, registra quantos dias se passaram desde o ataque atômico a Hiroshima e quantos dias se sucederam desde a última explosão nuclear no mundo. As engrenagens se movimentam mais rapidamente à medida que a tensão nuclear no planeta aumenta. Se uma bomba atômica for novamente usada, o relógio deixará de funcionar. Mito Kosei estava no ventre da mãe quando Hiroshima foi arrasada pela bomba atômica. Ele destaca a importância de se recordar daquele dia para que nunca mais ocorraTúmulo vazio Neste local encontra-se um túmulo vazio que representa as pessoas que perderam a vida no ataque. Há uma inscrição com os seguintes dizeres: "Deixemos todas as almas que estão aqui descansarem em paz. Para que nunca mais repitamos esse mal". Mito Kosei estava no ventre da mãe quando Hiroshima foi arrasada pela bomba atômica. Ele destaca a importância de se recordar daquele dia para que nunca mais ocorraChama eterna Ao fundo do túmulo que homenageia as vítimas do ataque, existe uma pira com uma chama que nunca se apaga. Trata-se de um clamor pela paz no mundo. Essa chama seguirá acesa enquanto houver bombas nucleares no planeta. Mito Kosei estava no ventre da mãe quando Hiroshima foi arrasada pela bomba atômica. Ele destaca a importância de se recordar daquele dia para que nunca mais ocorraOs portões É um dos mais belos monumentos que circundam o Museu da Paz. São 10 portões e em todos eles há inscrições com a palavra "paz" em dezenas de idiomas. O número de portões foi inspirado nos nove círculos do inferno descritos por Dante Alighieri em sua Divina Comédia. O décimo portão seria o inferno que se abateu sobre Hiroshima.

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