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Ditadura na Argentina: Kirchner abre arquivos

Decreto da presidenta acaba com sigilo sobre documentos que registram ação dos militares nos anos de chumbo

postado em 07/01/2010 07:01
Depois de receber ameaças de morte no dia do julgamento de militares suspeitos de crimes contra os direitos humanos, no mês passado, a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, assinou ontem um decreto que ordena a abertura dos arquivos sobre as atividades das Forças Armadas durante a ditadura militar de 1976-1983. O documento foi publicado no Diário Oficial e assinado pela presidenta e pelos ministros da Justiça, Julio Alak, e da Defesa, Nilda Garré. Segundo Cristina, manter essas informações em segredo é contrário à "política de memória, verdade e justiça" que o Estado vem adotando desde 2003. A ditadura argentina na década de 1970 é apontada por historiadores como uma das mais sangrentas e traumáticas na América Latina.

"Passados mais de 25 anos desde o retorno da democracia, não é possível continuar aceitando a falta de acesso à informação e documentação, sob caráter de segredo de Estado ou qualquer definição de segurança que impeça o conhecimento da história recente, impedindo o direito da sociedade de conhecer seu passado", diz o texto. O documento afirma que os papéis classificados como "não públicos" serviram para "ocultar ações ilegais do governo de fato".

O decreto responde a um pedido da Justiça, que investiga violações dos direitos humanos durante os anos da ditadura. "Cabe ao atual Estado democrático e republicano suspender o segredo e a confidencialidade das informações que possam favorecer o conhecimento integral dos fatos vinculados com violações dos direitos humanos", afirma o texto. A abertura dos arquivos também responde às críticas das organizações pró-direitos humanos, pois promete acabar com a lentidão dos processos que se arrastam na Justiça por falta de informação.

O secretário de Direitos Humanos, Eduardo Luis Duhalde, celebrou a decisão de Cristina. "Essa medida agiliza, em primeiro lugar, a remissão das informações solicitadas pelo Judiciário", disse. Segundo Duhalde, esse material já era, em grande parte, de conhecimento do Arquivo Nacional da Memória, que tem acesso aos dados do Ministério da Defesa. A diferença é que, para que fossem tornados públicos, era preciso ter uma autorização para cada caso.

Já o subsecretário de Direitos Humanos, Luis Alén, detalhou que os arquivos que deverão ser abertos não tratam exatamente da repressão, mas "dos grupos de inteligência do Exército" que agiram durante o regime. "Sempre se teve acesso a esse material, mas cada vez que era preciso obter um documento, era necessário um decreto. O novo decreto é para todos os documentos, o que agiliza os trâmites e encurta os prazos", disse.

As investigações começaram no mandato do ex-presidente Néstor Kirchner, marido de Cristina. Em 2007, ele assinou um decreto presidencial que determinou o fim do sigilo para membros das Forças Armadas, do setor de segurança ou do Executivo, quando convocados pela Justiça para falar sobre sua atuação e as funções exercidas durante a ditadura. Durante o governo de Néstor Kirchner, falou-se no fim das leis de impunidade - que na prática serviram de anistia aos acusados.

Suspeito
A Polícia Federal argentina prendeu ontem um dos suspeitos de ter interferido na comunicação do helicóptero que transportava Cristina em 11 de dezembro, no percurso entre a residência oficial, na Quinta de San Isidros, e a Casa Rosada. Na ocasião, o criminoso emitiu declarações ofensivas, instando os pilotos a que matassem "a égua". O acusado se chama Néstor González e foi encontrado com aparelhos de rádio capazes de interferir nas emissões na capital, além de aparelhos móveis. Ele tem ficha na Comissão Nacional de Comunicações, acusado de outras interferências no passado. A Justiça vai investigar se a voz que ameaça Cristina é de González.

Processo complicado
No Brasil, abrir a caixa de Pandora está bem mais complicado. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, criticou na virada de ano o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e comandantes militares que se manifestaram contra a criação da Comissão da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos. "O Brasil não pode se acovardar e querer esconder a verdade. Anistia não é amnésia. É preciso conhecer a história para corrigir erros e ressaltar acertos", disse Britto. A criação da comissão também provocou atritos entre Jobim e o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Jobim considerou que a comissão teria o objetivo de revogar a Lei de Anistia de 1979. Segundo Jobim, a busca pela verdade não pode significar "revanchismo".


; Análise da notícia
Coragem cívica
Silvio Queiroz

Ao longo das últimas duas décadas, a Argentina tem estado na vanguarda do continente no que diz respeito a confrontar a herança dos anos de chumbo - os anos 1960 e 1970, principalmente, quando a América do Sul praticamente inteira sucumbiu a um ciclo de ditaduras militares. Não apenas os argentinos foram os primeiros a retornar à democracia, em 1983, passados sete anos do golpe. O primeiro governo civil, do recém-falecido Raúl Alfonsín, mandou para a cadeia os generais que comandaram as juntas militares, ao preço de enfrentar duas rebeliões nos quartéis.

A insubordinação foi contornada apenas por seu sucessor, Carlos Menem, com as leis que na prática anistiaram torturadores, assassinos de opositores e ladrões de crianças (nascidas na prisão ou tomadas ainda pequenas de pais presos políticos e entregues para adoção). O traço que diferencia o processo de revisão do passado político na Argentina é a coragem e consciência cívica exibidos pelos cidadãos.

Quando os processos contra generais, almirantes e brigadeiros começaram, torturadores e mandantes eram execrados em público, vaiados e hostilizados onde quer que fosse reconhecidos. A entrada de um deles em um restaurante, por exemplo, provocava a saída em massa dos demais clientes. Entre marchas e contramarchas, a sociedade civil jamais desistiu de exigir a verdade sobre os crimes de Estado, a reparação possível das vítimas e a punição dos autores.

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