postado em 16/01/2010 08:27
Sensação de abandono, medo da morte, dor por terem perdido tudo em questão de segundos, fome avassaladora, total ausência de esperança. Tudo isso, somado ao fato de o Haiti ser reduto de gangues armadas com machetes - espécie de facão - e abrigar 4,5 milhões de pessoas em estado extremo de pobreza, transforma Porto Príncipe em uma bomba-relógio. "Se as pessoas não encontrarem comida e água elas se tornarão furiosas. E farão qualquer coisa por isso", alertou ao Correio, por meio da internet, Tamara Rimpel. Moradora do bairro de Delmas 33, na região oeste da capital haitiana, ela trabalhava como gerente de reservas no Hotel Villa Creole, cujo prédio ficou bastante danificado. "As pessoas estão violentas e famintas. Já invadiram casas, em busca de alimentos", confirmou à reportagem Rachelle Abraham, 24 anos, uma sobrevivente. Na terça-feira passada, a funcionária de uma companhia telefônica da capital estava na Escola de Hotelaria do Haiti quando tudo desabou. "Minha escola caiu em 10 segundos e fiquei sem respiração. Alguém me ajudou a sair dos escombros apenas alguns minutos depois", afirmou Rachelle, também por meio da internet. "Pensei que estivesse morta, mas Deus salvou minha vida."
A gratidão por ter sido resgatada logo deu lugar à incerteza. "As pessoas estão comendo o que encontram pela frente. Eu acho que nossa água está contaminada, porque muitos corpos jazem nas ruas"D, acrescentou. Já Tamara tem apenas uma palavra para descrever a situação de Porto Príncipe: "devastada". De acordo com ela, os detentos que fugiram da principal prisão de Porto Príncipe já estão cometendo roubos. Com medo e sem sair de casa, Tamara conta com a ajuda dos vizinhos, que conseguiram comprar água e comida. "Não sabemos por quanto tempo vamos sobreviver. Em minha vizinhança, casas não caíram, mas lá para baixo tudo é terrível", comentou. As estimativas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) são de que 70% dos prédios de Porto Príncipe foram destruídos.
No fim da tarde de ontem, o primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, anunciou que 15 mil corpos já haviam sido recolhidos e enterrados. O ministro da Saúde Pública, Alex Larsen, estima em ao menos 50 mil o número de mortos e em 250 mil o total de feridos. Por sua vez, a Organização das Nações Unidas (ONU) revelou que 37 funcionários morreram e 330 ainda estão desaparecidos, inclusive o brasileiro Luiz Carlos da Costa, a segunda maior autoridade civil da entidade. Enquanto as autoridades tentam agilizar os sepultamentos em valas comuns, parte da população apela para os roubos, na esperança de amenizar a fome e a sede. Pelo menos um armazém do Programa Mundial de Alimentos da ONU foi saqueado, confirmou ontem a organização à agência de notícias France-Presse. "Em uma situação de emergência e tão desesperadora como esta, os saques não são incomuns", disse a porta-voz, Emilia Casella. Na noite de quinta-feira, alguns haitianos resolveram protestar contra a demora na ajuda de forma macabra: empilharam corpos nas ruas, bloqueando a passagem.
Preocupação
Tamara Rimpel conta que os estabelecimentos comerciais que ainda não foram saqueados vendem água a preço triplicado. "Escutei algo sobre tiroteio em locais de ordem, como o centro da cidade", disse Tamara. Durante todo o dia, choro de alegria e tristeza se confundem pelas ruas. "As pessoas estão descobrindo que tiveram mortos na família ou que seu parentes sobreviveram. O som é o mesmo, porque são gritos de dor e miséria ou de felicidade", acrescentou. Ela compreende que, se a ajuda demorar demais para chegar, os haitianos começarão a morrer. O próprio ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, disse ontem que sua maior preocupação é a possibilidade de a crise se agravar e prometeu enviar armas não letais para ajudar no controle de violência. Ao desembarcar ontem em São Paulo, o cabo Carlos Michael Pimentel de Almeira, capacete azul das Nações Unidas, relatou ter vivido momentos de grande tensão logo após o terremoto. "Quando saí da base, já estava cheio de haitianos vasculhando o prédio. Eles estavam em busca de fuzis."
A luta pela sobrevivência produz cenas insensatas. A analista administrativa Geraldine Padovanive Scown, 24 anos, admitiu que o povo tem atuado agressivamente na busca por comida, água e abrigo. "É terrível. As pessoas correm e caminham sobre outras pessoas. Elas brigam por alimentos", descreve. "Eu estou sem dormir há quatro dias e, hoje pela manhã, houve uma forte réplica", contou. Na realidade, o US Geological Survey (USGS) - organismo responsável por análises geológicas e sismologia dos Estados Unidos - mediu três réplicas na região, sendo duas de magnitude 4,6 na escala Richter e a outra de magnitude 4,7. Geraldine se diz bastante preocupada com o filho de 20 meses e sonha em levá-lo para a Austrália (o pai do garoto é australiano
Relatos do inferno
"As pessoas estão violentas e famintas. Já invadiram casas, em busca de alimentos"
Rachelle Abraham, 24 anos
"É terrível. As pessoas correm e caminham sobre outras pessoas. Elas brigam por alimentos"
Geraldine Padovanive Scown, 24 anos