Renato Alves
postado em 02/02/2010 09:17


Um texto, por mais bem escrito e detalhista, uma fotografia e mesmo imagens com áudio e movimento na TV, nada, absolutamente nada, consegue aproximar o leitor, internauta, telespectador, da realidade haitiana. Quem passa por Porto Príncipe e tem sensibilidade, é humano, torna-se mais humano. Tem oportunidade de rever conceitos de dor, sofrimento, tragédia, caos.

Quando desembarquei na ilha, em 19 de janeiro, desci do avião tomado pelo preconceito transmitido pela maioria dos canais de TV, principalmente pelas redes internacionais. Só pensava na violência. Corpos, pedaços de gente sob escombros. Crianças órfãs vagando pelas ruas. Adultos andando com malas, cestas, bacias cheias de coisas. Levando o que sobrou, não se sabe para onde. O cenário da capital haitiana embrulha o estômago e corta o coração. Mas o haitiano, definitivamente, não é uma ameaça.
É maldade ou erro de interpretação falar de violência quando haitianos retiram mercadorias das lojas que ruíram ou sacos de comida jogados de helicóptero são disputados por uma multidão faminta. No que restou de calçada, ambulantes vendem de tudo. Inclusive comida. Postos de combustíveis ainda têm gasolina. Alguns mantêm lojas de conveniência funcionando.
Se houvesse vandalismo, violência gratuita, as barracas, os postos, os vendedores seriam atacados. Os estrangeiros, também. Afinal, todos sabem que eles carregam suprimentos e dinheiro. Apenas em dois dos sete dias no Haiti contei com escolta de militares. Ao lado apenas de um fotógrafo e de um intérprete, andei por ruas movimentadas, entrei em acampamentos de desabrigados, visitei feiras populares. Nunca me senti ameaçado. Nem mesmo quando, à noite, paramos na periferia da capital para pedir informação ou abastecer o carro numa estrada deserta da área rural. Aprendi que bastava dar um sorriso ou estender a mão para receber o mesmo.
Perigo real é morrer soterrado. Na manhã de um terremoto de 6 graus, estava sob o concreto do lobby de um dos poucos hotéis poupados pelo grande terremoto do dia 12. Saí correndo. Tremi por mais de meia hora.
Mas nada me incomodou mais no Haiti que ter muito para o padrão local, mas pouco para ajudar a tantos. Passar por desabrigados na entrada do hotel e saber que logo estaria deitado em um colchão. Carregar duas garrafinhas de água e duas barras de cereal na mochila e não poder dividi-las com os famintos para não causar tumulto ou privilegiar alguém.
Também convivi com a falta de mobilidade. O trânsito na cidade não andava. As ruas estreitas, sem asfalto, tomadas pelo lixo que sempre existiu e por concreto dos prédios destruídos, estavam tomadas por blindados, tratores, caminhões da ONU, dos EUA, além dos carros, caminhonetes, motos e todo tipo de veículo dos haitianos. Entendi o porquê de as doações não chegarem a determinadas áreas.
Em meio a esse cenário, nenhum jornalista trabalhava com planejamento, com uma pauta definida. Qual a estratégia? Entrar no carro e começar a rodar. Não havia como não cruzar com uma história digna de uma reportagem.
Difícil era encontrar uma história que resumisse, traduzisse todo o horror enfrentado por milhões de haitianos sedentos por água e comida, à espera de uma ajuda que não chegava. Impossível esquecer o Haiti. (Renato Alves)
"O cenário da capital haitiana embrulha o estômago e corta o coração. Mas o haitiano, definitivamente, não é uma ameaça"